Patrícia Carvalho, in Público on-line
Portugal, a par com os restantes países do Sul da Europa, enfrenta um futuro mais quente, com mais ondas de calor, secas e a possibilidade de cheias causadas por períodos de chuva muito muito intensos. “A chuva de um ano a cair numa semana”, alerta um dos especialistas ouvidos pelo PÚBLICO.
Os cientistas que há anos estudam as alterações climáticas em Portugal são unânimes: o mais recente relatório do IPCC (sigla inglesa de Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas) não traz grandes novidades quanto à forma como o país, e a região do Mediterrâneo em geral, serão afectados. Subida de temperatura, aumento dos períodos de seca e ondas de calor, períodos de chuva menos frequentes mas mais intensos, e uma linha de costa ameaçada pela subida do nível médio do mar são as principais consequências que se retiram das conclusões do IPCC - que se basearam em milhares de artigos científicos, incluindo portugueses -, mas se estamos preparados para isso já é outra questão.
“Por muito que os decisores políticos queiram tomar este relatório como novidade, isso pode ser visto como uma desresponsabilização. É claro que hoje temos uma informação mais detalhada, um conhecimento mais vasto, mas do ponto de vista substancial, não há ali grandes novidades”, diz Pedro Matos Soares, físico da atmosfera do Instituto Dom Luiz da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), reforçando: “Os resultados não são manifestamente diferentes do que sabíamos, o que mostra coerência [no trabalho desenvolvido], mas têm uma fundamentação mais forte. Há mais corpo científico, mais observações e melhores modelos.”
Também Filipe Duarte Santos, coordenador, em 2006, do Projecto SIAM II - Climate Change in Portugal. Scenarios, Impacts and Adaptation Measures (Mudanças do Clima em Portugal. Cenário, impactos e medidas de adaptação), em que já eram apresentadas projecções da evolução do clima na linha do que o IPCC vem agora definir, afirma: “Em relação à região do Mediterrâneo, o relatório confirma-o como um hot spot das alterações climáticas. A temperatura média tem estado a aumentar mais do que à escala global, na ordem de 1,5 graus Celsius, quando a nível global rondará os 1,09, 1,1graus. Também já se observa uma redução da precipitação média anual, que é muito clara em Portugal e é um dos aspectos mais preocupantes, por causa dos recursos hídricos e também por causa dos fogos florestais. Na Europa há uma área ardida anual muitíssimo maior na região do Mediterrâneo - Portugal, Espanha, sul de França, Itália, Grécia - e a tendência é para continuar porque vamos ter ondas de calor mais frequentes, mais intensas e secas”, diz o especialista em alterações climáticas da FCUL.
Rui Perdigão, professor catedrático em Física de Sistemas Complexos e Dinâmica do Clima e presidente do Meteoceanics Institute for Complex System Science, em Viena (Áustria) diz “passar a vida a fazer contas para salvar vidas”, trabalhando com modelos que permitiram, por exemplo, antecipar em algumas semanas a probabilidade da chegada das cheias que, no mês passado, deixaram devastadas várias partes da Europa central. Saúda no relatório do IPCC, a maior atenção dada aos extremos, e em relação a Portugal, deixa um alerta: “Não nos podemos esquecer das cheias. Não é por o sul da Europa esperar uma probabilidade inferior de termos cheias regulares que devemos pensar que o nosso problema é apenas a seca. Porque a quota de água [da região] continua a existir na atmosfera e vai ter de ser escoada. Ou seja, o que veremos é uma excessiva concentração [de água] na atmosfera, que em vez de cair regularmente, cai de repente, é a chuva de um ano a cair numa semana. Esse é o problema: num clima árido haver situações em que se passam meses a fio sem cair um pingo e depois cair uma quantidade brutal extremamente concentrada no tempo e o espaço, o que faz com que áreas como o Alentejo, com a terra ressequida, percam capacidade de infiltração. Mesmo em Lisboa, os planos de drenagem são para um regime de extremos que já não existe”, diz.
Mais adaptação
O ministro do Ambiente e da Acção Climática, João Pedro Matos Fernandes, reconhece que o país tem um caminho a fazer do lado da adaptação. Apesar de Portugal ser várias vezes citado como um exemplo no trabalho desenvolvido ao nível de clima - nomeadamente, ao nível energético e de redução de emissões -, o ministro defende que “quem está na linha da frente da redução de emissões tem a obrigação de começar a fazer um discurso complementar a esse, que é o do restauro e valorização dos ecossistemas, do território”. E aí, diz ao PÚBLICO, ainda não estamos “na linha da frente”.
No rescaldo da divulgação das principais conclusões do relatório do IPCC, Matos Fernandes diz ter encontrado sobretudo “duas novidades, uma técnica e outra de linguagem”. Do lado técnico, o ritmo a que o planeta poderá tornar-se 1,5 graus mais quente do que no período pré-industrial, foi o que mais o marcou. “Chegarmos a esse valor em menos de 20 anos é um factor novo, há um sentimento de urgência maior do que o que vinha de trás”. E que, refere, a própria linguagem usada na transmissão das conclusões sustenta: “Não me recordo de ver uma linguagem tão escatológica como esta num documento destes, tão de vida ou de morte. E este sentido de comunicação é de maior importância, a três meses da cimeira [da COP26] de Glasgow, que é importantíssima, diria mesmo a mais importante desde Paris”.
Esta segunda-feira, na apresentação do relatório, a co-presidente do Grupo I, responsável pelo documento, Valérie Masson-Delmotte, frisava que a comunidade científica estava a dar aos decisores políticos o conhecimento e os instrumentos para saberem o que vai acontecer em diferentes cenários de aquecimento do planeta, cabendo-lhes decidir o que fazer e até onde estão dispostos a ir.
Filipe Duarte Santos mostra algumas dúvidas sobre se haverá a capacidade de dar a resposta necessária, que tem de ser, obrigatoriamente, global. “Em relação ao resto do mundo, a União Europeia está a fazer bastante. Pode-se fazer mais, mas é indiscutivelmente líder no processo de descarbonização. O problema é que o mundo é muito fragmentado, muito complexo, e temos casos muito complicados, que não conseguirão fazer a transição sem um grande auxílio exterior. Mas o sentido de urgência em diminuir as emissões de gases com efeito de estufa vem no momento certo”, diz.
Pedro Matos Soares também chama a atenção para a antecipação da data em que o planeta poderá ultrapassar a barreira do aumento do aquecimento global de 1,5 graus, o que considera “muitíssimo severo”, já que, defende: “Estamos a falar de uma sociedade impreparada para este tipo de extremos, tanto ao nível das pessoas como economicamente.” E Portugal tem pela frente “grandes desafios”. Se seremos capazes de responder é uma incógnita: “Portugal até é pioneiro em algumas áreas, mas há quatro anos ainda estávamos a manifestar-nos contra a exploração de petróleo em Portugal. É tudo muitíssimo recente”, diz.
Num mundo em mudança e em que a componente humana tem uma quota parte inegável no que aconteceu e no que irá acontecer, Rui Perdigão deixa mais um aviso: “As autarquias, os agricultores, os agentes económicos têm de redimensionar as perspectivas de adaptação e mitigação. As estruturas têm de ser dimensionadas para extremos em que a magnitude e frequência não se coadunam mais com o que foi desenhado. Na altura, fizeram-no correctamente com os dados que havia, mas esses modelos já não servem, têm de ser refeitos com a ciência construída hoje. A agricultura, por exemplo, tem de preparar um sistema de resposta a infiltrações num regime de precipitação brutal. Há que redimensionar estruturas de engenharia civil, práticas agrícolas, tendo em atenção esta ciência emergente que nos fornece informação clara e objectiva quanto às tendências.”