Clara Viana, in Jornal Público
Pede mais diálogo, menos injustiça social, interroga-se sobre rendimentos de altos gestores. E admite que cidadãos não entendem reformas da saúde
Uma mensagem que faz eco dos sentimentos de injustiça, um apelo ao diálogo, um semi-retrato de um país em crise - o discurso de Ano Novo ontem proferido pelo Presidente da República, Cavaco Silva, esteve longe do tom jubilatório adoptado pelo Natal pelo primeiro-ministro, José Sócrates.
Foi talvez a primeira vez que um alto responsável do Estado adoptou publicamente uma das principais críticas da "rua": "Não podemos deixar de nos inquietar perante as desigualdades na distribuição do rendimento que as estatísticas revelam", disse ontem à noite o Presidente, em mensagem transmitida pela RTP.
As estatísticas revelam, por exemplo, que Portugal é o país da UE onde há mais desigualdade entre ricos e pobres. Cavaco Silva não falou nem dos mais ricos, nem dos mais pobres, mas apontou esta discrepância "comum" em Portugal: "Sem pôr em causa o princípio da valorização do mérito e a necessidade de captar os melhores talentos, interrogo-me sobre se os rendimentos auferidos por altos dirigentes de empresas não serão, muitas vezes, injustificados e desproporcionados, face aos salários médios dos seus trabalhadores".
Cuidado com verbas da UE
Invocando os conhecimentos adquiridos durante as suas recentes viagens pelo país, Cavaco Silva admitiu que as reformas na Saúde - um dos sectores mais contestados - servem objectivos que os portugueses não entendem, predominando ainda a ideia de que são os mais fracos as principais vítimas.
"Seria importante que os portugueses percebessem para onde vai o país em matéria de cuidados de saúde", disse, depois de apontar o seguinte: "O acesso aos cuidados de saúde é uma inquietação de muitos portugueses. Não estão seguros de que os utentes, principalmente os de recursos mais baixos, ocupem, como deve ser, uma posição central nas reformas que são inevitáveis para assegurar a insustentabilidade financeira dos serviços de saúde".
Cavaco manifestou-se convicto de que Portugal poderá vencer o desemprego - "atingiu níveis preocupantes" - e aproximar-se "do nível de desenvolvimento médio da União Europeia", mas assumiu que, para vencer estes e outros desafios, é preciso mudar de atitude: "Será altamente vantajoso o aprofundamento do diálogo entre os agentes políticos e do diálogo entre os poderes públicos e os grupos e parceiros sociais".
"Perante as dificuldades de crescimento da nossa economia, perante a angústia daqueles que não têm emprego e a subsistência de bolsas de pobreza, devemos concentrar-nos no que é essencial para o nosso futuro comum, e não trazer para o debate aquilo que divide a sociedade portuguesa", defendeu.
Mais diálogo também no sector da educação, defendeu o Presidente, sublinhando que é necessário "melhorar o clima de confiança entre todos os intervenientes no processo educativo". Esta é uma das chaves para se "reduzir o atraso de qualificação dos nossos jovens".
2008 vai ser o ano de uma nova vaga de fundos comunitários. A propósito, Cavaco insistiu na necessidade de uma maior racionalidade e voltou também ao tema corrupção, embora sem o nomear: "Exige-se que estes fundos sejam aplicados com verdadeiro sentido estratégico e geridos com eficiência e transparência. É uma oportunidade que não podemos desperdiçar".
Poucos elogios
Na mensagem de Ano Novo, os elogios foram escassos. Cavaco realçou "o papel desempenhado pelo Governo" durante a presidência portuguesa da União Europeia e as "importantes reformas" aprovadas no sector da justiça. Esta foi uma das metas principais para 2007 apontadas, há um ano, por Belém.
Mas, apesar do novo pacote legislativo, Cavaco considerou que o funcionamento do sistema de justiça continua a ser "um obstáculo ao progresso económico e social do país".