Ana Oliveira Rodrigues, in Jornal de Notícias
Sopa quente, bolos, sandes e sumos são o pretexto para chegar junto dos sem-abrigo, consumidores de drogas e álcool, que vivem à margem da sociedade
Os relógios marcam 2010 horas. À porta do Centro de Atendimento a Toxicodependentes e Alcoólicos, em Benfica, os voluntários preparam-se para mais uma ronda pela noite. A carrinha, cheia de sandes, sopa, sumos e bolos está pronta a arrancar. É, assim, todas as quartas-feiras. Uma viagem por algumas das zonas mais problemáticas de Lisboa.
Hélder Vilar, 34 anos, Miguel Portugal, 35, Luciano Trigacheiro, 61, Fernanda Gonçalves, 53, Bruna Carvoeira, 24, Vasco Marchão, 35, e Roberto Emiliano, 40 anos. Todos têm vestidos os coletes fluorescentes de cor amarela.
A primeira paragem é um prédio embargado, em Benfica. A lanterna que Hélder traz na mão derrama luz sobre o horizonte escuro e o silêncio é quebrado pelo chamamento dos voluntários. Aos poucos, vão aparecendo.
São na maioria ucranianos ilegais e portugueses que trabalham na construção civil. O problema maior é o álcool. Reconhecem os voluntários e os apertos de mão tropeçam uns nos outros. À despedida, os estômagos aconchegados agradecem e os sorrisos surgem espontâneos.
Ainda em Benfica, Lurdes, mãe de Mafalda, abre a porta de casa. O cenário é acolhedor. Na sala, os livros de Eça de Queirós marcam presença nas estantes do móvel branco. Em cima da mesa de jantar, um álbum de memórias antigas e, no sofá, a Bíblia.
Mafalda apareceu hoje em casa, após estar quatro dias desaparecida. "Chegou a casa comeu um bife, um iogurte e uma peça de fruta. Agora, está fechada no quarto e nem comigo quer falar", desabafa Lurdes. Hélder foi o único a falar com a jovem de 19 anos e, da porta entreaberta, ouvem-se os gritos de Mafalda. "Está a ressacar", comentam Miguel e Luciano cá fora.
Incapaz de ouvir Hélder, Mafalda só diz "estou com pressa
tenho trabalho
já estou atrasada". "Por agora, é melhor deixar as coisas como estão", aconselha Hélder.
Bairro dos Bosques
O Bairro dos Bosques, na Amadora, está praticamente vazio. André está a dormir quando Hélder chama por ele. Aparece à janela, com os olhos ainda meio fechados. Depois da insistência dos três voluntários, decide sair e ir buscar uma sandes. Já cá fora, Miguel pergunta-lhe "Atacas ou não atacas isto? É para partir, mas é de cabeça!". André é alcoólico e, segundo Hélder, "quando se é alcoólico crónico, é preciso ter acompanhamento médico e psicológico".
Os três voluntários chamam por Rute. Nada. Apenas o silêncio cortante que atravessa os meandros escuros daquelas casas abandonadas. A casa, em tempos ocupada por Rute, está agora deixada ao acaso e a única presença viva que se sente é o odor que transpira do lixo empilhado no chão. "Já a filaram", afirma Hélder.
Amadora
David e João partilham uma casa abandonada na Amadora. David começou a consumir aos 13 anos e a passagem pelos melhores colégios não o impediu de entrar no mundo da toxicodependência.
Hoje, com 32 anos, espera, dentro de um ano, arranjar dinheiro para ir ter com a família à Austrália. "Eles nem sonham que estou nesta situação."
As escadas íngremes, protegidas por uma passadeira azul escura, direccionam os voluntários para o quarto onde os dois ocupantes dormem. "Não liguem à desarrumação", pede David, esboçando um pequeno sorriso.
João está sentado na cama de casal. À sua frente, uma mesa pequena com duas velas brancas acesas e um isqueiro. As seringas, essas, foram guardadas por respeito, mas os hematomas na mão de João não mentem. "Quando se injecta fora da veia, o resultado são hematomas", explica Hélder.
Benfica
De volta a Benfica, o destino é, agora, um casarão abandonado que deu abrigo a alguns toxicodependentes. Descem as escadas devagar. A causa de tanto alarido pode ser a polícia. Ali conversa-se e come-se. Tenta-se criar uma aproximação e insiste-se na mudança.
Encostado ao muro que cerca a casa, está um senhor. Anda para a frente e para trás, num vai e vem vagaroso e as lágrimas escorrem do nada. "Aquele senhor é, de certeza, o pai de alguma rapariga que está lá em cima a drogar-se. Os pais são, sem dúvida, os mais atacados no meio disto tudo", confessa Hélder.