Ana Cristina Pereira, in Jornal Público
Em Portugal é corrente os técnicos defenderem que uma criança pequena não deve ir para uma família de acolhimento
As famílias de acolhimento captadas pelas equipas de Segurança Social, muitas vezes sob pressão, no mesmo contexto desfavorecido em que a criança se insere, têm baixos rendimentos, fraca escolaridade, escassa formação e acompanhamento técnico quase nulo. Decidido a promover a saída de crianças e jovens em risco dos lares, o Governo parece empenhado em alterar este quadro. O novo modelo, aprovado no dia 8 de Dezembro em Conselho de Ministros, distingue família alargada de família de acolhimento. O diploma - agora na Presidência da República - aposta na formação e no acompanhamento das famílias de acolhimento, profissionalizando-as.
No início de Dezembro, havia 9547 crianças em centros de acolhimento ou lares, 2698 em famílias de acolhimento a Dizer que as crianças entregues a famílias de acolhimento tendem a ter maior quociente intelectual do que as alojadas em lares será uma espécie de banalidade. Dizer que as retiradas aos lares e entregues a
família de acolhimento antes dos dois anos mostram uma melhoria mais substancial é remeter para um estudo há pouco publicado na revista científica Science.
O Instituto de Segurança Social (ISS) não sabe dizer a idade das 9547 crianças colocadas em centros de acolhimento temporário ou lares, tão-pouco a das 2698 entregues a famílias de acolhimento. Não sistematiza tais elementos. Mas, em Portugal, até pelos exemplos que amiúde saltam para as páginas dos jornais, é corrente os técnicos defenderem que uma criança pequena não deve ir para uma família de acolhimento.
Os autores do estudo pretenderam precisamente alertar os países com elevadas taxas de internamento de crianças abandonadas ou retiradas à família de origem, como Portugal. Valerá a pena olhar para ele, embora não se possa transpor, de modo directo, os resultados obtidos: a realidade romena - com lares de lendária má qualidade e uma nova geração de famílias de acolhimento preparada de propósito, já que a Roménia não as tinha quando o projecto arrancou em 2000 - não terá paralelo com a nossa.
A equipa de investigadores - que inclui Charles Nelson III, da Universidade de Harvard, e Nathan Fox, da Universidade de Maryland - seleccionou 136 crianças saudáveis (idade média de 22 meses) residentes, quase desde o seu nascimento, em seis instituições romenas: uma parte permaneceu internada e outra foi entregue a famílias de acolhimento. Seleccionou também um grupo de controlo composto por miúdos que viviam no seio da família de origem.
Havia já evidência científica sobre problemas no desenvolvimento intelectual, emocional, psiquiátrico e cerebral das crianças que permanecem em instituições. "Há privação de típicos estímulos sociais e emocionais", explicou Nathan Fox, citado pela newsdesk da Universidade de Maryland. Haveria um "tempo ideal" para prevenir estes danos?, questionavam.
As crianças foram sujeitas a testes aos 30, aos 42 e aos 54 meses de idade. No fim, as canalizadas para famílias de acolhimento tinham mais dez pontos na prova de quociente intelectual do que as que ficaram dentro de uma instituição. As que abandonaram o lar antes dos dois anos tinham até 15 pontos mais. "Quanto mais tempo permanecerem na instituição pior será o seu quociente intelectual", deduziu Charles Nelson III, citado pela AP.
Duas correntes
Admitindo que "nenhuma instituição é melhor do que uma família" bem tratante, Luís Vilas Boas, director do refúgio Aboim Ascensão, considera "péssimo" enviar uma crian-
ça com menos de cinco anos para uma família de acolhimento - "um erro gravíssimo se tiver menos de três". Porquê? "Todas as crianças de baixa idade colocadas em famílias de acolhimento têm problemas de vinculação", argumenta, com a memória posta em já célebres processos como o de Iara. Nos centros de acolhimento temporário, o pessoal roda, "não há um vínculo, a criança sente-se livre. Ao aparecer a família certa, vincula-se em quatro ou cinco dias".
Há quem conteste este modo de ver a emergência infantil. Para Celina Cláudio, da Mundos de Vida, a primeira instituição particular de solidariedade social com competência para actuar no enquadramento do acolhimento familiar, "é preferível ter vínculos do que viver no vazio afectivo, é preferível ter referências do que viver naquela ansiedade, que leva a criança a idealizar, a idolatrar" os progenitores. No fundo, sofrer por amor parece-lhe mais natural do que viver sem amor.
Existe uma espécie de terceira via. Os bebés passíveis de serem encaminhados para o sistema nacional de adopção devem ser integrados nos centros de acolhimento
temporário, advoga Edmundo Martinho, presidente do ISS. Ali conjugam-se meios técnicos que permitem agilizar todo o complexo processo. "Não havendo condições de adoptabilidade, deve ser escolhida uma situação compatível com o que se espera ser o futuro da criança: uma família de acolhimento", enquanto a família de origem se recompõe.
Exemplos externos
Alguns países europeus revelam já uma clara "tendência para evitar que as crianças mais pequenas sejam encaminhadas para instituições, como o Reino Unido ou Espanha", sublinha Paulo Delgado, um professor universitário que está a fazer um pós-doutoramento sobre acolhimento familiar. Nas Baleares, por exemplo, não se pode internar miúdos com menos de seis anos.
O vínculo não se afigura um entrave nestes países. Descansa-os saber que "a criança encontrará ao longo da vida mais do que um modelo de afecto". Não por acaso, salienta o investigador, se define um período de transição. "Se a ruptura é feita de uma forma brusca, incompreensível, é traumatizante". Se não, é "só mais uma mudança difícil" num trajecto de vida.
Ao contrário de Paulo Delgado, Vilas Boas não se entusiasma com estudos como o agora divulgado pela revista Science: "A criança pode ter um QI elevado e ser uma destrambelhada e até uma criminosa aos 12 anos". O psicólogo, que gosta de se apresentar como precursor da emergência infantil em Portugal, repudia exemplos que se lhe afiguram menos avançados que o português: "Em Inglaterra, as crianças passam por três ou quatro famílias de acolhimento e acabam em instituições tipo Casa Pia". Depois dos cinco anos, sim, a família de acolhimento parece-lhe mais indicada do que qualquer instituição, a criança já consegue perceber. Até lá não. Até lá, quer "uma máquina" capaz de promover a saída da criança do centros de acolhimento temporário "no mais curto espaço de tempo".