Andreia Sanches, in Jornal Público
Associação diz que se vive "um momento de grande pobreza na comunidade imigrante". A história de Angelina, que ficou sem RSI...
Angelina Varela vive com cinco filhos, dos quais três são deficientes, em Almoçageme, no concelho de Sintra. Mora numa casa húmida e degradada cedida por uma instituição religiosa. Não tem quaisquer rendimentos. Um dos filhos precisa de cuidados permanentes e ela passa os dias em casa a tratar dele. Em Outubro, perdeu a única fonte de rendimentos que tinha: o Rendimento Social de Inserção (RSI). Foi suspenso porque a autorização de residência caducou.
Agora, são alguns vizinhos próximos que lhe pagam as contas - a luz, o gás, a água, o passe para a filha de 16 anos ir à escola... A mercearia e o talho fornecem-lhe fiado. Sem a prestação que recebia de 566 euros mensais de RSI - uma medida destinada a apoiar as pessoas que estão em situação de grave carência económica - a mãe dos cinco filhos, dos quais quatro nasceram em Portugal, ficou aflita. "Nem para as fraldas tenho dinheiro", contava ao PÚBLICO poucos dias antes do Natal.
Quem precisa de fraldas é o rapaz de 26 anos, o que apresenta a deficiência mais profunda, explica Angelina Varela à porta do quarto onde dorme com as duas filhas, uma de 30, outra de 16 anos. É um quarto frio, de paredes por rebocar, com a telha à vista. "Ainda esta noite fui mordida por um rato, aqui no dedo. Era só sangue no lençol", resigna-se Angelina. Os ratos, como o vento frio de Inverno, entram por entre as telhas. O cheiro a humidade é opressivo. A janela não tem vidro nem portada, está tapada com uma almofada.
O caso de Angelina - que chegou a Portugal "há quase 30 anos" - está longe de ser único. "Estas situações são muito frequentes", diz Flora Silva, da Associação Olho Vivo, uma organização não governamental que presta apoio a imigrantes. "O Rendimento Social de Inserção obriga os imigrantes a terem a sua situação regularizada. E se os títulos caducam, as prestações são suspensas."
Como lidar com ilegais
Helena Silveirinha, assessora de imprensa do Instituto de Segurança Social (ISS), explica que isso não significa que não se preste apoio, seja através da Segurança Social ou das instituições com quem esta tem protocolos.
Em Setembro de 2006, o ISS emitiu mesmo uma nota com orientações para os serviços de acção social onde se clarifica a intervenção que devem ter em situações semelhantes.
Nessa nota esclarece-se que mesmo aos imigrantes ilegais "não podem os serviços da Segurança Social deixar de prestar auxílio de emergência". E que os cidadãos que aguardam uma decisão sobre "processos de prorrogação de autorização de permanência ou de renovação de autorização de residência" têm direito, "desde que as disponibilidades financeiras dos serviços o permitam", a subsídios eventuais para as coisas básicas e ao acesso a equipamentos.
Flora Neves diz, no entanto, que "a Segurança Social não tem capacidade de resposta para tantas necessidades". E lembra que muitas famílias acumulam diferentes problemáticas.
"Isto funciona como uma pescadinha de rabo na boca: se não têm rendimentos não renovam as autorizações de residência, se não as renovam não arranjam trabalho, se não arranjam trabalho vêem a sua situação agravar-se. Vivemos num momento de grande pobreza na comunidade imigrante", continua. E muitas pessoas acabam por ficar "ex-
cluídas dos direitos". Mesmo, insiste, se já descontaram durante anos para a Segurança Social.
Angelina vai receber apoio
Angelina Varela é acompanhada pela Segurança Social desde 1997. O filho que tem a maior deficiência passa os dias em casa com ela, sem qualquer apoio. A irmã mais nova, de 16 anos, tem uma bolsa de estudo e subsídio de alimentação para a frequência de um curso de cozinheira na Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Cascais. Outros dois irmãos, de 24 e 25 anos, frequentam o Centro de Educação para o Cidadão Deficiente. Do Centro Social Paroquial de Colares a família recebe algum apoio alimentar.
Mas há três meses Angelina ficou sem RSI, que é o dinheiro com que pagava as contas, as fraldas, a comida, tudo. A mãe explicou ao PÚBLICO, em grande aflição, que a prestação lhe fora retirada na sequência de uma notificação da Segurança Social recebida no princípio de 2007 onde era informada de que devia aos serviços 1156 euros por ter, alegadamente, recebido dinheiro a mais.
Contactado pelo PÚBLICO, o ISS ficou de apurar a situação. Dias depois, acabou por fazer saber que a suspensão do RSI que esta família recebia se prendia apenas com a caducidade do título de residência. A dita dívida já não existe - a situação terá sido regularizada "com a entrega da prova anual de rendimentos para efeito de abono de família". Mas alguém se esqueceu de explicar isso a Angelina.
Na última semana de Dezembro, Angelina foi finalmente convocada para um "atendimento de acção so-cial" que aconteceu, quinta-feira, dia 27. Na sexta (28 de Dezembro), o ISS fez saber que a família passará mesmo a receber a partir de Janeiro "apoio económico mensal para manutenção do agregado até estar resolvida a situação da suspensão do RSI". E já está marcado no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras o dia em que Angelina irá tratar da renovação das autorizações de residência.
A mãe está um pouco mais tranquila. Mas a voz ainda lhe treme quando pensa em Janeiro: "Disseram que o apoio só chega no fim do mês, ou no próximo. Como é que eu vou aguentar Janeiro todo?" A essa pergunta ninguém lhe deu resposta.
O rapaz que não tem identidade
Deficiente sem documentos não existe para a assistência social
A família de Angelina Varela é um novelo de problemas.
O filho que apresenta maior grau de deficiência mental depende dela para tudo: "Para tomar banho, para se alimentar, para se vestir..."
Nasceu em Portugal, mas nunca frequentou a escola, nem recebe qualquer prestação social. Não tem qualquer capacidade para compreender que há anos está envolvido num processo judicial.
Alguém se apropriou dos documentos do rapaz e foi apanhado a conduzir sem carta de condução, informa o Instituto de Segurança Social (ISS).
O jovem deficiente foi declarado contumaz, ou seja, é tratado pela Justiça como um réu que faltou a um julgamento, não tem direito a documentos.
A Associação Olho Vivo ficou encarregada de tratar do assunto, faz saber o ISS.
Em 2005, a Olho Vivo contactou o advogado responsável pelo processo, entregou-lhe até um relatório médico para mostrar como era impossível que este deficiente andasse a conduzir, com ou sem carta. "O rapaz é absolutamente incapaz de conduzir", sublinha Flora Silva, presidente da organização não-governamental.
Mas desde 2005 nada se passou. "Esta família vive longe, não tem telefone, não fazíamos ideia que o problema não estava resolvido", diz Flora Silva quando contactada pelo PÚBLICO. "Acompanhámos a família, na altura, ajudámos com os documentos, pagámos as autorizações de residência dos restantes filhos que, com a excepção da mais velha, nasceram todos em Portugal, e encaminhámos o caso do rapaz para o advogado", continua.
Mas o problema persiste. "Ou porque o advogado não deu andamento ao processo, ou porque o tribunal se atrasou."
Entretanto, o rapaz mais velho continua a não ter identidade e a não existir para a assistência social. Não tem nenhuma prestação, qualquer apoio. Passa os dias em casa com a mãe.
O ISS informa, no entanto, que a possibilidade de vir a ser também integrado no Centro de Educação para o Cidadão Deficiente, já frequentado por dois dos irmãos, será analisada.
Números do RSI
110.786 famílias estavam, em Novembro de 2007, abrangidas pelo Rendimento Social de Inserção
308.623 pessoas integravam os agregados familiares abrangidos pelo RSI, 38 por cento dos quais são menores de 18 anos
82,76 euros é o valor médio da prestação mensal de RSI que cada membro de uma família abrangida pela medida recebe
221 euros é o valor médio da prestação por família
Fonte: Instituto de Segurança Social