9.1.11

Cortes salariais: um novo PREC?

Por Paulo Trigo Pereira, in Jornal Público

PREC - processo revolucionário em curso. Há os que se lembram, participaram e gostaram e os que não gostaram. Há os que, sendo muito novos ou ainda não nascidos, têm uma ideia mítica do que foi e querem mostrar à geração que os precedeu que também são dignos da "revolução". "Faça você mesmo, ponha uma providência cautelar, uma ação administrativa especial, um pedido de fiscalização para travar esta ignóbil medida de redução salarial na função pública para as remunerações ilíquidas acima de 1500 euros" - poderia ser o slogan deste novo PREC.

Na altura, como agora, havia os democratas que aceitavam os resultados da deliberação e votação colectiva e aqueles que, quando derrotados, queriam mesmo ganhar nem que fosse na secretaria. Mutatis mutandis, é o que se passa hoje com alguns sindicatos (função pública, magistrados do Ministério Público, professores) a interporem providências cautelares e incentivarem os cidadãos a fazer o mesmo. Mário Nogueira, citado pela Reuters a 5 Janeiro, explica para o mundo ler: "What happened is, the government said there was a crisis, needed money and decided to rob the workers." Ignoro se algo terá sido lost in translation. Mas não admira que o país, com "amigos" destes, tenha juros da dívida soberana elevados. O efeito prático desta estratégia sindical será apenas o de aumentar a litigância judicial, os custos judiciais, a morosidade da justiça e a despesa pública.

Os partidos que se sentam à esquerda no hemiciclo (BE, PCP e Verdes), liderados pelo BE, preparam-se para solicitar a apreciação de inconstitucionalidade dos artigos 19.º, 20.º e 21.º do OE2011 que prevêem aquela redução. Aparentemente, inspiram-se num Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) (n.º 141/2002) que, a requiremento da Procuradoria-Geral da República, deliberou no sentido da inconstitucionalidade de uma norma do OE de 1992 que estabelecia que as remunerações dos funcionários públicos não poderiam ser superiores à do primeiro-ministro.

É inverosímel que o TC considere a norma inconstitucional. O TC foi então confrontado com a questão de saber se a norma violava os princípios da igualdade e o princípio da protecção da confiança, este inserido no princípio mais geral do Estado de direito democrático (art.º 2.º CRP). A deliberação foi que não violava o primeiro, mas sim o segundo. Acontece que, após revisão constitucional, despareceu o princípio da confiança no art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa, e com ele o eventual fundamento da inconstitucionalidade. Na altura tratava-se de uma norma legislativa de pequeno alcance, quer pelos indivíduos abrangidos quer pelo impacto orçamental. Agora esse impacto é significativo e é uma medida estrutural proposta pelo executivo e aprovada pelo legislativo. Se fosse posta em causa pelo terceiro poder - o judicial -, estar-se-ia a violar o princípio de separação de poderes que sustenta a nossa democracia liberal.

Vejamos agora a dimensão económica da questão. Os cortes salariais inscritos no OE2011 são de 0% (até 1500 euros), 3,5% (de 1500 a 2000), crescendo até 10% para rendimentos superiores a 4165 euros. Por exemplo, remunerações de 2500, 3000, 3500, 4000 levarão cortes de, respectivamente, 6%, 7,67%, 8,86% e 9,75%. Em teoria económica isto significa que existe proporcionalidade até 1500 (0%), uma progressividade do corte salarial entre 1500 e 4165 (taxa de 3,5% a 10%) e uma proporcionalidade a partir desse montante (10%). Só uma falta de literacia económica ou recurso à demagogia (ou ambas) podem levar alguém a dizer que os cortes são regressivos. Porém, o que se lê? O Sindicato dos Quadros técnicos afirma que "as percentagens de corte crescem de forma regressiva". Sendo verdadeiro no intervalo considerado é falacioso pois exclui da análise os rendimentos inferiores a 1500 euros, onde o corte é nulo (0%). Adicionalmente, do ponto de vista da equidade o que interessa é o corte salarial (em %) e não a sua variação. Quem conta um conto acrescenta um ponto - o BE ao relatar (esquerda.net) a posição do sindicato dá o título "Tabela de Cortes Salariais é regressiva", o que é totalmente falso.

Os conceitos genéricos de equidade são complexos (ver a obra de Amartya Sen, em particular On Economic Inequality), mas os conceitos em finanças públicas são claros (ver Musgrave e Stiglitz). Os cortes aprovados satisfazem os critérios de equidade horizontal (tratar igual quem está em posição igual) e equidade vertical de acordo com o princípio da capacidade de pagar (maior corte para quem tem maior capacidade). Claro que outros seriam possíveis satisfazendo esses critérios.

É necessário que meros cidadãos ou políticos sejam responsáveis nas suas acções privadas e declarações públicas, sobretudo as que possam ter repercussões nacionais e internacionais. A revista Der Spiegel acaba de referir que Portugal deverá ter de recorrer ao Fundo Europeu de Estabilidade Financeira e a pressão de algumas instâncias internacionais vai nesse sentido, para evitar um efeito de contágio à Espanha. Portugal deverá fazer o que tem a fazer. O Governo executar o Orçamento aprovado. Os partidos da oposição dar garantias de estabilidade política para um prazo razoável (nove meses) para poder verificar se o executivo cumpriu (ou não) o aprovado. Não o fazendo, estão também a contribuir para o clima de instabilidade política e a perda de soberania orçamental nacional.

O que está em causa não é a concordância individual com o OE2011. Lamento que sucessivos governos tenham sido incapazes de controlar as finanças públicas e que estejamos a pagar por isso, tal como considero errado que se suspenda o SIADAP e os prémios de mérito em 2011. Tenho defendido que teria sido possível fazer um OE mais justo. Contudo, respeito as decisões democráticas da Assembleia da República e reconheço que este OE2011, sendo recessivo no curto prazo, terá efeitos benéficos a médio prazo. O PREC, em que participei activamente, e de que guardo saudosa memória, foi por melhor democracia, mais justiça e mais desenvolvimento - algo longe de ser cumprido, mas que nada tem a ver com cortes salariais. Professor do ISEG/UTL