in Jornal Público
No dia seguinte a uma das noites mais festivas do ano, muitos jovens comemoram até à manhã de dia 1. Mas para se divertirem na passagem de ano há um ingrediente obrigatório: o álcool. E há quem esteja atento a este comportamento típico e de risco dos adolescentes. Uma mala cheia de objectos para usar em acções de prevenção de comportamentos de risco. Na rua, no meio dos jovens, junto de pais, de professores e de profissionais de saúde.
A ideia é do médico psiquiatra Luis Patrício, ex-director do Centro das Taipas. Já está registada no Ministério da Cultura. Há sete anos pediu um parecer ao Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) mas continua sem resposta.
Uma mala de alumínio. Lá dentro, há testes de alcoolémia, imitações de drogas legais e ilegais, preservativos, jogos, vídeos, seringas. Um conjunto de objectos para usar numa acção pedagógica com o objectivo de prevenir comportamentos de risco. Pesa 15 quilos. Quem a transporta é o médico psiquiatra Luis Patrício, ex-director do Centro das Taipas.
É sexta-feira à noite, faz frio mas mesmo assim dezenas de jovens juntam-se para beber nas ruas de Santos, em Lisboa. Sentados nos degraus de casas, em bancos de madeira à porta dos bares, segurando copos de cerveja, garrafas de vinho envoltas em jornais ou papelão. Alguns têm muito menos de 18 anos. É assim todos os fins de semana. É para lá que Luis Patrício se dirige, acompanhado da psicóloga Leonor Santos com quem costuma trabalhar e de outros psicólogos da associação “Outros Olhares” que também intervêm habitualmente na prevenção de comportamentos de risco junto de jovens.
Dados recentes revelados por Augusto Pinto, da Unidade de Alcoologia de Coimbra do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) indicam que cerca de 80 por cento dos jovens com 15 anos consomem bebidas alcoólicas em Portugal.
De acordo com o II Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoactivas na População Geral de 2007, a prevalência do consumo de bebidas alcoólicas aumentou entre 2001 e 2007 de 75,6 por cento para 79,1 por cento. No que respeita aos jovens, o mesmo inquérito revela que a proporção da população que iniciou o consumo de bebidas alcoólicas entre os 15 e os 17 anos representava em 2001 cerca de 30 por cento, valor que aumentou para 40 por cento em 2007.
Em Maio, João Goulão, presidente do Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT), alertou: "Não há medidas de fiscalização eficazes" para controlar o consumo de álcool entre menores de 16 anos.
Patrícia, de 15 anos, com um copo de cerveja na mão, esclarece: “Nestes bares, ninguém se recusa a vender bebidas alcoólicas aos jovens, nem pedem identificação. Só se for no supermercado, mas aí, há sempre um amigo mais velho a quem pedir para ir comprar”.
A mala de alumínio desperta curiosidade quando Luis Patrício se senta junto de quatro jovens que repartem uma garrafa de vinho branco. Apesar da surpresa inicial, depressa se manifestam receptivos ao diálogo. “Qual é o limite de consumo de álcool a partir do qual há risco?” pergunta o médico. “Dois copos? Três?” respondem os jovens, querendo saber: “Isto é para quê? É para entrarmos num estudo?
Luis Patrício tira algumas cartolinas da mala e propõe-lhes que respondam às perguntas lá escritas: “Porquê que bebes?” Resposta: “Para tirar a sede”. “O álcool não tira a sede” explica o médico. “Por exemplo, bebes meio litro de cerveja, urinas mais, desidratas, aumenta a sede.” “Para aquecer”, responde outro. “O álcool não dá calor, retira o calor e não dá energia nem alimenta”.
Assim o médico vai desmistificando muitas das ideias preconcebidas em relação ao consumo de álcool. “Temos de promover uma revolução cultural profunda porque as pessoas continuam a dizer e a pensar que o álcool é bom e os alcoólicos é que não prestam”, diz, sublinhando: “O álcool é uma droga com a qual podemos ter uma relação em determinado tipo de condições e fora das quais não é possível ter uma relação clara”, nota.
Ao deslocar-se aos locais onde os jovens se encontram e convivem, e com recurso aos objectos que guarda no interior da mala, promove a reflexão e dinamiza conceitos de educação para a saúde face a consumos e a comportamentos de risco.
“A mediatização de uma ideia através da manipulação de um objecto materializado, mesmo de uso comum, pode contribuir para interiorizar um conceito. Quando um emissor dirige uma informação, pode-se conseguir um melhor acolhimento se o conteúdo estimular uma relação dinâmica”, escreve Luis Patrício no poster que apresenta em acções de formação para pais, professores e profissionais de saúde. Já passa da uma da manhã. Os jovens riem, divertidos, participam nos jogos da mala. Há pretextos para falar da sua vida pessoal. “Eu comecei a sair à noite aos 12 anos, mas em Odivelas. Vir para Lisboa, só aos 15”. “Você é médico de quê?” perguntam.
Não há droga, há atitude
O recurso à Mala da Prevenção tem um objectivo inicial, explica Luis Patrício: desmistificar o conceito de droga. “Há milhares de substâncias com efeito psicoactivo, legais ou ilegais, naturais, semi-sintéticas ou sintéticas, de rua, de farmácia . Boa parte delas são usadas na promoção da saúde, no tratamento da doença são os medicamentos”, explica.
Para este psiquiatra, a droga “não é a substância em si, mas a atitude de a utilizar de uma forma incorrecta, nociva para a saúde”. “Na nossa cultura, o álcool é legal e promovido, é beatificado ou diabolizado e as pessoas não estão informadas sobre a relação que podem ter com ele”, diz o médico. “Pergunte à maioria dos seus amigos qual é a quantidade de álcool que podem consumir sem entrar em patamar de risco para a saúde, pergunte aos profissionais de saúde, e as pessoas não sabem”. E esclarece: “Hoje temos a informação de que um homem não deveria consumir, por dia, mais de duas unidades, dois copos de vinho ou duas imperiais e, por semana, mais de 21 unidades. Uma mulher, não devia consumir semanalmente mais de 14 unidades. Numa ocasião de festa, uma pessoa não devia consumir mais de quatro unidades”.
O psiquiatra acrescenta que as pessoas que decidem consumir mais, “ao menos têm uma referência do que é entrar num patamar de risco” e salienta que há mais de 60 doenças provocadas pelo álcool. “A chamada bebedeira que é tão cultivada em certos meios, é uma intoxicação. E as pessoas promovem intoxicações. A bem de quem?”, questiona.
Quanto aos jovens, já não restam dúvidas: não deviam consumir álcool antes dos 18 anos. Para “esperar que as capacidades do sistema nervoso central atinjam o máximo do seu desenvolvimento antes de ele começar a fazer consumos que possam provocar estragos”, adverte Luis Patrício
Perante a banalização do consumo de álcool entre os jovens portugueses, nos últimos anos, o médico considera que “vale a pena ver onde isso acontece. Em que famílias e em que ambiente”. O que leva estes jovens a procurar e a valorizar mais o que encontram, por exemplo, nas docas, do que o que têm em casa? interroga-se. O mais importante “é o que está por trás do consumo”, salienta E “que educação tiveram os pais para educar os seus filhos?”
O papel dos pais
Na opinião de Luis Patrício, compete aos pais “mostrar interesse pelos filhos, estudar o que estiver ao seu alcance para ensinar ou discutir com eles, ouvir o que têm para dizer e dizer-lhes o que acham do que eles disseram”. O que “não pode ser é reforçar a criação de mundos paralelos”, considera.
A autoria da mala da prevenção já está registada no Ministério da Cultura. Em 2003, Luis Patrício pediu um parecer sobre a sua validade enquanto instrumento de prevenção ao Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) mas, passados sete anos, continua à espera de uma resposta.
O director do Instituto João Goulão considera que a mala é “um instrumento útil que deveria ser validado” mas, como não é especialista, decidiu pedir “aos serviços para se pronunciarem”, o que não aconteceu até agora.
Entretanto, Luis Patrício continua a ser convidado para fazer acções de formação com a mala em vários locais do país, entre os quais, os Açores, e do estrangeiro, como Espanha, Cabo Verde e América Latina (Lima, Quito, La Paz, Bogotá, Caracas).Sentado num degrau da porta de entrada de um prédio, em Santos, o Rui vai bebendo e partilhando com os amigos uma garrafa de vodka. Tem 16 anos. Já ali está há duas horas. “A conviver”, diz a rir, eufórico. O grupo (três rapazes de 16 e de 17 anos e duas raparigas, de 15) juntou uns trocos e comprou a garrafa num supermercado de Campolide. Ninguém lhes perguntou a idade, dizem. “Foi tranquilo”, salienta o Rui. Ele frequenta o 11º ano, tem boas notas e, aos fins de semana, gosta de beber. “Mas é só quando vou sair”, explica. “Dá para a semana inteira”, acrescenta o Hugo, divertido. “Eu nem gosto de beber álcool, estou a falar a sério. Bebo é pelo efeito que dá”, sublinha o Diogo.
Os pais da Catarina e da Inês, sabem que elas sairam com os amigos. Mas desconhecem que desde que sairam de casa já beberam quase meia garrafa de vodka. E não chegarão a saber. A Inês disse que dormia em casa da amiga e os pais da Catarina não costumam verificar a que horas ela entra aos fins de semana. “Já estão a dormir e nem se levantam”.
Todos eles se mostram informados sobre os riscos do consumo de álcool mas nenhum tem medo de se tornar alcoólico. “Só bebemos ao fim de semana, para o convívio, e nas festas. Mas não estamos dependentes”, afirmam, descontraídos.