Já não é Primavera nesta região alentejana. Os anos seguidos de seca, associados à intervenção desregrada do homem, estão a deixar o Sul do país numa situação crítica, sobretudo para as actividades em regime de sequeiro. Agora, o que por lá encontramos são sobreiros secos, muita cortiça que "não ganhou o ano", o rio Sado moribundo, fios de água para alimentar culturas e animais, cevadas e trigos com um palmo de altura. “Faltando água na Primavera, falta-nos tudo. É assim o destino", resume o agricultor Joaquim Sobral.
Uma estranha sensação de vazio tomou o lugar nos olhares antes pasmados com uma das mais impressionantes paisagens naturais que a Primavera devolvia à planície alentejana. Milhões de flores de esteva, pampilhos, magarças, papoilas, que realçavam as tonalidades verde, rosa, amarela, vermelha e roxa, foram substituídas por uma deprimente imagem deixada pelas sucessivas ondas de calor e a escassez de chuva: uma tonalidade cinza que desconforta.
Os ribeiros deixaram de correr em Março e os poços estão a secar em Maio. A busca desesperada por água leva as máquinas a esburacar a terra cada vez mais fundo, por vezes centenas de metros. Até os animais que apascentam nos campos deixaram de encontrar o pasto natural. Necessitam de ser alimentados à mão com fenos, forragens e rações, que só se encontram à custa de preços altos.
É ano de tirar a cortiça nalguns dos nossos povoamentos, mas não vamos fazer. A Primavera foi seca e a cortiça não ganhou o ano. Rui Manuel Gonçalves dos Santos
José Maria Rasquilha, vice-presidente da Associação Nacional de Proteaginosas, Oleaginosas e Cereais (ANPOC), descreve ao PÚBLICO um panorama preocupante: “Vamos ter a maior catástrofe de sempre desde que há registos sobre os impactos da seca” nos sectores da produção de cereais e pecuária.
Um cenário que era impossível de prever em Dezembro, quando “o melhor Outono em muitos anos, com níveis hídricos altíssimos entre os 82% e os 85%”, garantia um ano agrícola excepcional que galvanizou os agricultores para apostar no aumento das áreas semeadas de cereais", recorda o dirigente da ANPOC.
No entanto, e depois de cinco meses sem precipitação atmosférica em grandes extensões do Alentejo, as cevadas e os trigos semeados no início do ano têm neste momento um palmo de altura. Não deram grão nem comida para os animais e, em muitos casos, não será possível fazer o aproveitamento da palha que, em circunstâncias normais, asseguraria a alimentação dos efectivos pecuários.
Num contexto em que os fenos e forragens escasseiam tanto em Portugal como em Espanha, o recurso está na aquisição de palhas em França, mas a custos proibitivos. “Estamos muito apreensivos com o que aí vem. A gravidade da situação vai-nos obrigar a esperar pelo Verão do próximo ano para saber se as condições climáticas são mais favoráveis para a produção de cereais” e de alimento para o gado, analisa José Maria Rasquilha, dando conta de que os produtores pecuários já estão a enfrentar as consequências resultantes da falta de água.
O PÚBLICO percorreu parte do território abrangido pela bacia do Sado no triângulo formado pelos concelhos de Santiago do Cacém, Ourique e Castro Verde, a região mais fustigada pelos efeitos da seca. Encontrámos um desolador retrato de uma terra carente. A falta de água torna ainda mais visível a dimensão da doença que afecta sobreiros, muitos deles centenários, e na propagação de mimosas (Acacia dealbata), uma planta infestante que eclode por todo o lado a par das florestações de eucaliptos.
Silvana Sobral, 72 anos, residente perto de Foros do Locário, Santiago do Cacém, não se recorda da persistente falta de água como a que as pessoas da região têm suportado nos últimos anos. “Já vivemos melhor do que agora”, diz, quando, há cerca de 20 anos, a sua família fez um grande investimento para produzir arroz. “Agora não temos água para manter a cultura”, refere inconformada. Restam algumas cabeças de gado e as crescentes dificuldades em alimentar os animais.
Forragem em vez de arroz
Ana Rita Simões, “esposa e sogra de agricultores”, destaca com mais pormenor a dimensão do problema ao atravessar uma ribeira. Ainda tem água, “mas depressa ficará seca, a manter-se este tempo”.
Os dados do Serviço Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH) sobre os volumes de água armazenados, no final de Abril, na barragem de Campilhas, que fornece água para o regadio na região do Alto Sado, confirmam que, entre o início do actual século e 2015, os volumes de água armazenados registam oito anos de pleno enchimento. A última vez foi em 2015. De então para cá os valores apresentam-se sempre abaixo dos 40%.
Em 2022, o volume armazenado ficou reduzido a 4,7%. E em Abril de 2023, situava-se já nos 12,8%. Rita Simões confirma que, de “Alcácer do Sal para baixo, não choveu”. Com efeito, em Janeiro de 2023, quando a esmagadora maioria das barragens públicas nacionais apresentava níveis de armazenamento superiores a 80%, a reserva em Campilhas, afluente do rio Sado, mantinha-se inalterada: 12,5%. E assim continua. No vermelho, com 3,3 milhões de metros cúbicos, quando tem capacidade para armazenar 28 milhões.
Mesmo assim, em vez de arroz “fizemos sementeiras de forragem de azevém” para os animais, dando continuidade à opção que já tinha sido tomada em 2022. “Em anos normais, a forragem crescia, dava-se um corte e a seguir vinha outro. Este ano só deu um”, lamenta a esposa e sogra de agricultores.
“Faltando água na Primavera falta-nos tudo. É assim o destino.” Joaquim Sobral
De 30 para dois fardos de forragem por hectare
O canal do sistema de rega que transporta a água de Campilhas projecta-se no horizonte cheio de ervas e folhas secas. A observação estava a ser feita quando se aproximava lentamente um fio de água. “É para regar as culturas permanentes”, explica ao PÚBLICO Joaquim Sobral, produtor de arroz e de gado e que toda a gente trata por “Barrigoto”, alcunha que diz ter ficado desde moço. “Mesmo sendo pouca [a água em Campilhas], têm de abrir os descarregadores, senão as árvores [oliveiras e amendoeiras] morrem.”
A leitura que faz da situação não o tranquiliza. “Só sei dizer que isto está mesmo mau. Muito mau. No ano passado suportámos uma seca terrível. Este ano, e mais cedo, vamos por um caminho ainda pior.”
Nas condições actuais, “fazer um hectare de arroz custa mais de mil euros em água”, que sofreu um corte substancial para quem faz a cultura. “E ainda temos os adubos e os herbicidas”, acrescenta o agricultor de 75 anos, com uma expressão de desalento: "Isto está na última.” Conta que houve anos em que não se atrevia a atravessar a ribeira de Campilhas. Com o braço em círculo definia a extensão da área que antes ficara submersa pelas cheias, “até onde a vista alcança”.
Imagens assim já fazem parte de um passado longínquo. “Tínhamos um ano seco de 10 em 10 anos. Agora, na última década, já tivemos metade dos anos com seca”, salienta Joaquim Sobral, rendeiro, nas terras que cultiva e onde apascenta o gado. “Os animais é que são o nosso maior problema”, frisando que, em anos normais, “tirava 30/40 fardos de forragem por hectare". "Este ano fiquei entre dois e quatro fardos.” A explicação para a escassez é fácil de encontrar: “Faltando água na Primavera falta-nos tudo. É assim o destino.”
Tem dois filhos ligados aos trabalhos do campo e sem vontade de ir para outro lado, “apesar de o horário de trabalho ser de 24 horas por dia” e o futuro não ser promissor. Mesmo com Alqueva. “O preço da água não dá para fazer arroz”, sentencia, reconhecendo não ter condições para fazer amêndoas ou azeite. “Também precisamos de um pouco de arroz e de carne na nossa alimentação, não acha?"
Tínhamos uma exploração de bovinos, mas já vendemos os animais porque as reservas de alimento davam apenas para três meses. Rui Manuel Gonçalves dos Santos
Barragens no vermelho
Na albufeira de Campilhas, junto à tomada de água (estrutura de captação e distribuição de água) coberta de ninhos de andorinha, um sobreiro nasceu de forma espontânea nas fendas da rocha xistosa. Teve tempo para crescer à medida que a cota do espelho de água se reduz, como na outra barragem do sistema de rega: Monte da Rocha, localizada no concelho de Ourique.
Assegura a rede pública de abastecimento nos concelhos de Ourique, Castro Verde, Almodôvar, Mértola e Odemira, ao todo cerca de 18 mil habitantes. E há muitos anos que consomem água tratada de um charco que obriga a medidas reforçadas no seu tratamento. No dia 12 de Maio, o volume armazenado nesta albufeira era de apenas 10 milhões de metros cúbicos, 10% da sua capacidade máxima de enchimento. É outra barragem pública que se encontra no vermelho.
O percurso do rio Sado que é retido pela barragem do Monte da Rocha apresenta-se, a montante e dezenas de quilómetros a jusante, completamente seco. Quando se olha para a sua foz ao largo de Setúbal, para a pujança dos empreendimentos turísticos que cobrem o cordão dunar que o rio e o oceano formaram ao longo de milhões de anos, dificilmente se compreenderá que a montante o rio deixou de correr há muitos meses. O historial nos armazenamentos de água nesta albufeira é em tudo idêntico ao que se observa na barragem de Campilhas.
Desde 2015 que os níveis de escassez se repetem até que chegue o prometido transvase de Alqueva, para garantir o consumo humano e o regadio de três mil hectares de terras com fraca aptidão agrícola, como a exploração de Rui Manuel Gonçalves dos Santos, com quem o PÚBLICO conversou enquanto uma máquina enfardava o que restava de uma seara de triticale, um cereal híbrido “fabricado” pelo homem e muito usado na constituição de rações para a produção de leite, ovos, aves ou suínos. “Por causa da seca, a seara não criou bago [grão] e estamos a enfardar o feno”, explica o agricultor, sublinhando as dificuldades em fazer regadio. “Só dão água para oito dias quando precisamos para 20.”
O recurso alternativo está na produção de cereais ou na pecuária. “Tínhamos uma exploração de bovinos, mas já vendemos os animais porque as reservas de alimento davam apenas para três meses.” Entretanto, a seara de triticale também se perdeu.
“No ano passado, a situação por causa da seca foi má, mas este ano ainda consegue ser pior”, realça Gonçalves dos Santos, frisando o prejuízo até para o montado de sobro. “É ano de tirar a cortiça nalguns dos nossos povoamentos, mas não o vamos fazer. A Primavera foi seca e a cortiça não ganhou o ano”, ou seja, devido à seca e às altas temperaturas, fica limitada a disponibilidade da cortiça para a colheita, uma vez que, como resposta natural, esta adere fortemente ao tronco e impossibilita o levantamento da camada sem danificar a árvore.
Muitos agricultores com povoamentos de sobreiros decidiram adiar a colheita por mais um ano, esperando que a chuva do próximo ano favoreça as árvores. “Além do mal que já têm – a fitóftora (Phytophthora cinnamomi) –, a seca não veio ajudar.” Também este agricultor espera que o próximo Outono traga chuva em abundância e, a seguir, a Primavera, que a região este ano perdeu de vista.
Nas aldeias e nos montes do Alentejo, a vida esmoreceu para dar lugar ao desalento e à vontade de partir. Até a vontade de rezar para que chova deixou de fazer sentido. Mas não se deixa de olhar o céu à espera de que a chuva volte de novo a alagar os campos e a encher as ribeiras.