7.11.14

Ainda há coisas que nos reconciliam com a esperança

Francisco Assis, in Público on-line

É lícito cultivar as melhores expectativas em relação ao futuro deste processo de pacificação da sociedade colombiana.

1. Num mundo e num tempo dados à prevalência de um certo cepticismo, ainda há personalidades e acontecimentos que nos reconciliam com a esperança na sua expressão mais simples. Na última terça-feira, o Presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos Calderón, deslocou-se ao Parlamento Europeu, onde, perante uma vasta plateia de deputados, proferiu uma intervenção acerca do processo de reconciliação nacional que se tem vindo a concretizar no seu país.

Oriundo de um partido de orientação conservadora, tendo exercido durante alguns anos o cargo de ministro da Defesa e, como tal, tendo-se destacado na promoção de acções repressivas em relação às FARC (organização guerrilheira de inspiração esquerdista), uma vez chegado à Presidência da República, Juan Manuel Santos estabeleceu como prioridade a pacificação da sociedade colombiana. Não é difícil perceber a dificuldade de uma tal decisão. Só um homem corajoso e verdadeiramente superior no plano político se poderia dispor à realização de tal tarefa. Foi o que ele fez. Ao fazê-lo, suscitou o inevitável afastamento de grande parte da sua base social e política de apoio, sem qualquer garantia prévia de sucesso da missão que se propunha levar a cabo. Durante quatro anos – inicialmente de forma secreta e depois com a devida publicidade que uma democracia exige – encetou negociações com os responsáveis pela organização guerrilheira. Com assinalável clareza expôs aos deputados europeus os principais passos e aspectos desse complexo processo.

No final da sua intervenção, que não importa agora aqui descrever com minúcia, ficou clara uma ideia, ainda que a mesma não tenha sido objecto de explicitação: no decorrer desse processo, este homem oriundo da oligarquia colombiana foi levado a compreender a realidade da pobreza, da exclusão e da miséria em que durante largas décadas viveram milhões de compatriotas seus. Nada no seu discurso indiciou qualquer tipo de cedência face ao extremismo, tantas vezes desumano, adoptado pelos guerrilheiros com quem agora dialoga. Contudo, e nisto não há qualquer contradição, em quase todas as palavras proferidas era possível vislumbrar uma reorientação na compreensão do seu próprio país. Por isso mesmo falou da necessidade imperiosa de atribuir novos direitos ao mundo do campesinato, de melhorar e aprofundar os mecanismos de participação e representação democráticas e de reforçar o empenhamento político no combate à pobreza e à desigualdade. De certa maneira, a sua singular história é a de um homem que, tendo ascendido ao mais alto cargo político nacional, recusou a acomodação institucional e encetou um caminho de transmutação doutrinária. Há algo de especialmente curioso neste fenómeno. Esse caminho levou-o de uma posição típica de um representante dos sectores sociais dominantes para uma outra, muito mais próxima da esquerda latino-americana.

Em tempos idos, numa bem diferente latitude, em França, François Mitterrand gostava de responder aos críticos que o acusavam de se ter transferido da direita para a esquerda com uma afirmação muito simples: talvez seja verdade, mas é um caminho mais raro e mais digno. O Presidente da Colômbia parece ter feito o mesmo percurso, sem renunciar, é certo, a algumas convicções que deixou bem expressas na alocução que temos vindo a referir. Defendeu o princípio da abertura económica e comercial, contestou o proteccionismo excessivo, recusou o antiamericanismo primário, característico de um certo tipo de populismo sul-americano, e deixou clara a sua opção por um modelo de democracia liberal. Em suma, revelou-se uma personalidade de grande solidez programática e política.

Como não poderia deixar de ser, subsistem dificuldades impeditivas da imediata resolução do conflito intracolombiano. Dois problemas avultam de entre os demais: o da articulação entre o objectivo da paz e a preocupação da salvaguarda da justiça, por um lado, e o do desarmamento, desmobilização e posterior reintegração dos guerrilheiros na vida cívica do país, por outro. Estamos perante temas de reconhecida complexidade, insusceptíveis de um tratamento simples. De uma certa forma, estas questões remetem-nos para a essência da própria decisão política e trazem-nos à recordação a distinção weberiana entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção. Só uma solução de compromisso no domínio da confrontação dos valores pode conduzir a resultados satisfatórios no plano prático. Ora, não sendo a política um subproduto da metafísica, nem tão-pouco uma decorrência automática da moral, o que se exige ao decisor público é precisamente a capacidade de alcançar com inteligência o melhor compromisso possível. Ao fazê-lo, suscitará sempre a animosidade dos cultores do purismo ideológico, tenham eles a conotação que tiverem. José Manuel dos Santos não iludiu os problemas remanescentes, antes os enunciou com clareza, revelando ao mesmo tempo a vontade e a firmeza imprescindíveis para a sua superação. É por isso lícito cultivar as melhores expectativas em relação ao futuro deste processo de pacificação da sociedade colombiana.