6.1.15

O Estado social de parceria e os pobres

José António Pinto, in Público on-line

Os problemas estruturais da pobreza e da exclusão social não se resolvem com medidas avulsas e locais.

Foram recentemente assinados 370 novos acordos de cooperação entre o Estado e as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). Para o ministro da Segurança Social, Pedro Mota Soares, trata-se de dar continuidade à construção de um pleno Estado social de parceria.

Percebi que, nesta cerimónia, o Governo anunciou que vai dar em 2015 mais 14 milhões de euros a estas entidades tão importantes para o auxílio das populações na prestação de serviços como apoio domiciliário, gestão de creches e infantários, equipamentos de apoio a deficientes, apoio a toxicodependentes, entre outros.

Esta decisão política significa que o Governo tem sensibilidade social? Quer com esta atitude demonstrar que respeita as IPSS e as considera verdadeiros parceiros sociais? Com este reforço de verbas estamos a reforçar o combate à exclusão e à pobreza?

Claro que não. O Governo transfere competências e atribuições na área da protecção social para as IPSS porque se trata de uma resposta mais barata, mais precária e com um menos encargo financeiro para o Estado. Se este Governo considerasse verdadeiramente as IPSS um parceiro social fundamental, dignificava as carreiras profissionais e os salários miseráveis da esmagadora maioria dos seus trabalhadores. Exigia certificação para estas exercerem determinadas actividades, fiscalizava e tutelava de forma adequada e eficiente o seu funcionamento, criava em todas elas a obrigatoriedade de equipas técnicas multidisciplinares, com formação permanente e avançada, proibia a promiscuidade familiar nos órgãos de gestão e no quadro de trabalhadores, vigiava os privilégios, regalias e benefícios de alguns directores destas instituições, que repentinamente passaram a conduzir carros de alta cilindrada, construíram moradias residenciais, deram emprego a amigos e familiares e constituíram-se como plataformas de favores políticos do poder local. Claro que nem todas as IPSS funcionam assim, mas muitas trabalham neste registo e preenchem este panorama — não utilizam ferramentas e metodologias de avaliação de impacto de resultados, não têm o hábito de gerar parcerias nacionais e internacionais no âmbito de projectos de intervenção comunitária, não editam manuais de boas práticas, não partilham recursos nem equipamentos, não protestam nem reivindicam junto do poder político com medo de perder apoios provenientes de acordos ou protocolos indispensáveis à sua sobrevivência.

Ajudar as IPSS, sr. ministro, era desamarrar as instituições desta dependência económica cada vez mais acentuada, disponibilizando linhas de crédito para suportar, sem juros, despesas de funcionamento muito pesadas como o gasóleo dos transportes, a electricidade, os salários e os encargos resultantes da construção ou a ampliação de instalações.

Transferir para a responsabilidade das IPSS e para a mão dos privados as funções sociais do Estado é um crime. Sou radicalmente contra esta decisão política por várias razões:

Primeira: é anticonstitucional. Diz a Constituição da República no seu artigo 9.º que são tarefas fundamentais do Estado promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais.

Estes direitos são universais e só promovidos pelo Estado é garantida a sua universalidade. No artigo 63.º do mesmo documento também é referido que incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de Segurança Social unificado e descentralizado.

Segunda: esta decisão vai destruir o serviço púbico de acção social e provocar muitos despedimentos de trabalhadores com vínculo e funções essenciais nos serviços da Segurança Social.

Terceira: vai degradar a qualidade das respostas sociais. As classes sociais mais desfavorecidas vão ter de novamente de ser expostas aos critérios habituais da caridade tradicional, local e religiosa para serem apoiadas e beneficiarem de alguns serviços. Do ponto de vista simbólico, tudo se explica — para pobres qualquer coisa serve e os filhos da burguesia terão sempre vaga nos prestigiados colégios privados.

Quarta: se o actual Governo de direita e de inspiração neoliberal quer poupar dinheiro para cumprir as metas do défice impostas pelos parceiros internacionais, não sacrifique novamente e de forma cruel os mais vulneráveis. Pode perceber que não foram os pobres que criaram esta dívida. Pode perceber que esta dívida é renegociável, pode perceber que pode ir buscar dinheiro com outra proveniência (cobrar rendas das PPP, taxar as grandes fortunas, combater a fuga e evasão fiscal).

Quinta: são falsos os argumentos que defendem que os privados e as IPSS fazem melhor e de forma mais eficaz este trabalho de protecção social junto das populações. As IPSS estão mais próximas dos utentes — é falso este argumento. O Estado também está próximo — os centros de saúde são exemplo desta proximidade, assim como os serviços descentralizados da Segurança Social. As IPSS são menos burocráticas — falso. O Estado tem quadros técnicos de qualidade e é fundamental que os dirigentes técnicos sejam efectivamente os mais qualificados e assegurem níveis de eficiência e eficácia à máquina do Estado que lhe atribua maior prestígio, respeito e credibilidade. Os dirigentes das IPSS nem sempre são qualificados e as suas decisões sobrepõem-se às dos técnicos que contratam, ficando estes limitados nos respectivos campos de actuação.

Sexta: os problemas estruturais da pobreza e da exclusão social não se resolvem com medidas avulsas e locais. As IPSS são fundamentais neste combate com funções de colaboração e intervenção complementar mas nunca devem substituir o papel central do Estado. Promover bem-estar social e elevar a qualidade de vida dos cidadãos é uma missão de interesse público que não deve ser adjudicada a terceiros, por mais barato que isso seja. Garantir a dignidade das pessoas não deve ser um negócio.

Assistente social