3.2.15

Manuel Lemos. “Em Portugal, só passa fome quem quer”

Marta Cerqueira, in iOnline

Manuel Lemos está há nove anos à frente das Misericórdias. “Ajudamos diariamente 150 mil pessoas, o que é o dobro de há dez anos”

O cargo de presidente da União das Misericórdias chegou-lhe às mãos depois da junção de uma série de factores: estava divorciado e, por isso, com mais disponibilidade, os filhos tinham o percurso encaminhado e reunia experiência na área social, acrescendo ao facto de ser católico. “Existem muitas instituições de solidariedade, mas nenhuma se assemelha às Misericórdias”, diz com o orgulho de quem gere as 400 em território português e ajuda no trabalho das mais 4200 em todo o mundo. Aos 65 anos, os planos começam a ser feitos a curto prazo, sendo a primeira prioridade acabar o mandato actual, já com os olhos postos numa “responsabilidade maior”, a da sucessão.

Em que é que a crise mudou as Misericórdias?
No plano interno houve um movimento de agregação, porque percebemos que nenhuma Misericórdia pode viver por si. No plano externo tivemos de aprender a fazer mais com menos, tendo em conta que a procura aumentou. As pessoas passaram a ter mais consciência das Misericórdias como uma instituição que pode realmente ajudar em alturas de dificuldade.

Ao mesmo tempo, nota que as pessoas ficam mais solidárias em tempos de crise?

Claro que sim. Os portugueses, nessas matérias, são muito emotivos, tomam as dores dos outros com muita facilidade, mas também se esquecem com a mesma facilidade. Temos o exemplo de Timor, que teve uma onda de solidariedade nunca vista, mas que passou rápido. As pessoas têm dificuldade em manter uma solidariedade permanente e habituaram-se a descarregar o que é mau no Estado e nas instituições.

O perfil de quem pede ajuda mudou?

Os que já pediam continuam a pedir, mas passaram a aparecer mais jovens que, normalmente, só numa fase mais avançada da vida é que tomariam consciência da presença das Misericórdias.

Deparam-se com muitos casos de pobreza envergonhada?

Sempre notámos isso. Aliás, as 700 Misericórdias italianas especializaram-se em pobreza envergonhada e temos pedido ajuda para enfrentar o problema em Portugal

Ser pobre é um estigma?

É uma questão de auto-estima, acima de tudo. Já vi casos de pais que estão desempregados mas que todos os dias se vestem como se fossem trabalhar, para os filhos não perceberem. Quando abrimos as cantinas sociais, só o pai ia ao local buscar comida para a família toda, para evitar expor a mulher e os filhos. Acabámos por ter de facilitar e permitir que as pessoas levassem comida para casa.

Mas as necessidades mudaram?

Há um conceito mais alargado de pobreza, de quem teve de mudar os seus padrões de vida. Somos um país pobre da União Europeia, mas a nossa pobreza não é a de há 30 anos. Na célebre manifestação de 15 de Setembro, ouvi uma senhora dizer “quero a minha vida de volta”. Percebi-a, ela pedia a expectativa de vida dela de volta. Estamos a falar da classe média que comprou casa e carro, fazia férias no estrangeiro e, de repente, se viu sem nada disso. Isso entra num plano íntimo das pessoas que se manifesta numa agressividade latente, no ar triste do dia-a-dia, nos insultos ao governo e, agora, até à oposição.

Ainda conseguem dar resposta a todos os pedidos de ajuda?

So far, so good. Mas toda esta situação levou a uma enorme descapitalização das Misericórdias, temos muitas Misericórdias nas lonas.

Quantas pessoas assistem?

Ajudamos diariamente 150 mil pessoas, o que é o dobro de há dez anos. Se a isso juntarmos a assistência hospitalar, esse número cresce exponencialmente.

Quais são os principais problemas sociais do nosso país?

Temos dois gravíssimos: a baixa natalidade e o envelhecimento da população.
O aumento da esperança média de vida arrasta consigo um conjunto de fragilidades do ser humano que se manifesta, por exemplo, nas urgências hospitalares.

O que pode ser feito para inverter a situação?

Do lado do envelhecimento, há muito a fazer e há três actores que precisam de se sentar à mesa sem preconceitos: a Saúde, a Segurança Social e as instituições da sociedade civil. Quanto à natalidade, devíamos termos 2,1 filhos para garantir a renovação das gerações e eu, como tenho dois filhos, já dei a minha contribuição (risos). É preciso criar condições para que as pessoas tenham filhos e, para isso, não basta baixar o IRS ou dar mais tempo às mães para ficarem em casa. Diz-se que os jovens são egoístas e não querem ter filhos, mas eu acho que os jovens se preocupam e muito com o futuro que podem dar aos filhos e, por isso, ser pai passou a ser uma decisão tão ponderada.

Como classifica o comportamento do governo face à solidariedade social?

Face às pessoas, este governo foi uma desilusão, tendo em conta que lhes cortou reformas, subsídios, etc. Em relação às instituições, este governo foi exemplar, porque se sentou a conversar connosco. O governo percebeu que, sem nós, tínhamos tido uma situação muito pior. Quando se diz que somos a almofada social, nós somos a almofada, o travesseiro, o edredão, o colchão com penas.

É um apoiante deste governo?

É comum dizerem isso, mas eu não apoio o governo, apoio as Misericórdias. Se o governo quer conversar comigo sobre isso, claro que me interessa, mas se o governo me vem dizer o que fazer, já não me interessa. Eu sei que é fácil bater em Passos Coelho, mas atendeu-me sempre que eu precisei. Não é muito cool dizer isto, mas é verdade.

Foram obrigados a pedir mais apoio ao Estado nos últimos anos?

Tem sido difícil, porque o Estado não tem dinheiro. Só conseguimos continuar a fazer o nosso trabalho porque houve o esforço de fazer mais com menos.

Mas as Misericórdias também têm sido uma ajuda para o Estado. Veja-se agora o caso das urgências.

A abertura de hospitais da Misericórdia para apoiar os do SNS vai ser inevitável. O nosso objectivo não é ter lucro, é atender as pessoas, e isso vai continuar a acontecer desde que o Estado seja justo e pague, pelo menos, aquilo que lhe custa a ele.

Quais são as vantagens deste aumento de poder das Misericórdias nos hospitais?

Não acho que seja uma questão de poder, mas sim de serviço. O Estado tinha nacionalizado tudo, depois devolveu tudo e só faltava devolver os hospitais. Tivemos uma paciência infinita.

É de esperar alguma mudança significativa?

Queremos aumentar as respostas e é por isso que vamos avançar com um seguro de saúde das Misericórdias. O Estado pode não estar interessado, mas as pessoas sim, e contam com um valor de Misericórdia. A saúde é um factor determinante para a fixação das populações. Havendo um bom serviço de saúde, as pessoas não sentem necessidade de sair do local onde vivem, entrando num processo de renovação local.

A vossa gestão vai ser diferente da que era feita pelo ministério?

Não tenho a prepotência de achar que somos melhores que os gestores públicos, mas a nossa natureza dá-nos uma maior rapidez na resposta do que a que o Estado pode oferecer. Se um provedor diz que quer um ecógrafo, o Estado tem de fazer um concurso público. Nas Misericórdias podemos comprar no próprio dia, e isso muda tudo.

O que é que as Misericórdias ganham com a gestão hospitalar?

O cumprimento da nossa missão. Cuidar dos doentes é uma das obras da Misericórdia e é importante lembrar que, se um hospital fechar porque o provedor quis, ele passa de bestial a besta mais depressa que um treinador de futebol. A população não perdoa que uma coisa que foi criada há 500 anos faça algo contra ela.

E as cantinas sociais, outra das bandeiras das Misericórdias, continuam a ter muita procura?

O número estabilizou e diminuiu em alguns casos.

Mas acha que a fome ainda é um problema em Portugal?

Em algumas zonas urbanas e bairros sociais é um problema, sim. Mas também digo que, em Portugal, só passa fome quem quer. Há quem passe fome por desconhecimento da presença das cantinas sociais e temos também os casos de pobreza envergonhada que preferem não pedir ajuda. Mas não é por falta de resposta.

Os problemas são os mesmos em todo o país?

Não, há uma grande diferença entre o urbano e o rural e, às vezes, basta uma distância de 20 quilómetros para se ver as diferenças. Uma pessoa do interior tem de andar vários quilómetros para chegar ao hospital; em Lisboa, basta uma viagem de metro. No entanto, no meio rural, basta ir ao quintal para se ter animais e legumes para a alimentação, coisa que não acontece na cidade. Há pessoas que acham que Portugal, por ser pequeno, é todo igual, mas as diferenças são enormes.

Mota Soares disse que os portugueses batem mais rapidamente à porta de uma Misericórdia que do Estado. Concorda?

Batem de outra forma, batem com a certeza que são mais bem tratados. É diferente entrar em casa de um amigo ou em casa da nossa família e, ainda que o Estado seja o amigo, a Misericórdia faz parte da família.

A esquerda em Portugal ainda é a ala mais solidária?

O PS tem uma tradição fantástica e única de ligação ao sector social que o PSD e o CDS estão a recuperar. Temos provedores de todos os partidos, temos inclusive muitos do PCP que são pessoas fantásticas e merecem todo o mérito. Mas não ando a perguntar a cada provedor qual é a sua preferência política.

Mas diria que tem mais provedores de esquerda?

Não, tenho muitos simpatizantes com o PSD. Houve uma ideia que uma certa esquerda mais folclórica e liberal criou que as Misericórdias seriam uma coisa do passado, uma coisa de velhinhos, mas já se percebeu que não corresponde à verdade.

Um governo liderado por António Costa seria diferente a nível social?

Ainda não tive oportunidade de falar sobre isso com António Costa mas, em teoria, as preocupações mantêm-se, as formas de actuar é que são diferentes.

O seu nome é apontado como o mais certo para substituir Silva Peneda no Conselho Económico e Social. Como tem sido abordado o tema?

Não me tenho preocupado nada com isso. Fiquei muito surpreendido, mas não entra na minha equação.

Não pensa aceitar o cargo?

Esse cargo é de exclusividade. Não seria compatível com a presidência da União das Misericórdias.

Entre os dois cargos, qual escolheria?

A União das Misericórdias. Uma coisa é fazer uma substituição pontual de um presidente e ficar lá uns meses. Para ajudar, estou sempre disponível, mas para ficar em permanência não.

Quem acha que seria a pessoa ideal?

(risos) Pergunte ao dr. Passos Coelho ou ao dr. António Costa.