16.2.15

“Uma percentagem elevada da população caiu numa situação dramática”

Andreia Sanches, in Público on-line

Alimentos, roupa, dinheiro, serviços. O valor dos apoios aos mais pobres prestados pela Cruz Vermelha Portuguesa em 2014 ronda os 1,5 milhões de euros, nas contas do seu presidente nacional, Luís Barbosa. Quatro vezes mais do que três anos antes. “É difícil pensar que ao nível do Estado se vão encontrar soluções para alguns destes problemas.” São as instituições sociais que têm de responder, defende.
Luís Barbosa: “Distinguiria duas situações: o grupo da população que se ambientou, a nível mais baixo, sem sombra de dúvida, e aquele que não tem condições para se adaptar.” Miguel Manso

A "conjugação de problemas de saúde com problemas financeiros" tem levado cada vez mais pessoas a pedir ajuda para pagar contas de água, luz e medicamentos, para ter acesso a alimentos e a outros bens de primeira necessidade, diz Luís Barbosa, presidente nacional da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP). A instituição, que a 11 de Fevereiro de 1865 nasceu com o nome de “Comissão Provisória de Socorros a Feridos e Doentes em Tempo de Guerra”, inicia esta quarta-feira as comemorações dos seus 150 anos de vida.

Fundador do CDS, Luís Barbosa teve uma intensa actividade profissional — que passou, por exemplo, pela administração da Companhia de Seguros Império, da Parque EXPO’98 SA e do Hospital da CUF (de cujo conselho de administração foi presidente) — e foi ministro em dois governos diferentes (entre 1981 e 1983), das Obras Públicas e dos Assuntos Sociais. Desfiliou-se em meados dos anos 80, por “sentir” que o partido estava “a posicionar-se mais direita”. Aos 81 anos, preside em regime de voluntariado a uma instituição que gastou no ano passado o equivalente 1,5 milhões de euros em apoios a carenciados — quatro vezes mais do que três anos antes.

Disse numa entrevista no ano passado que 20% das pessoas em situação de carência que apoiavam eram da classe média e que só não eram mais porque estas pessoas não pedem ajuda por vergonha. Quem é que acha que sofreu mais com a crise e com o programa de resgate: a classe média ou os mais pobres?
Perante o programa de austeridade, um conjunto de pessoas adaptou-se às novas condições e organizou a sua vida a um nível mais baixo, indiscutivelmente. Passou a consumir diferentemente — e hoje o modelo de consumo é tão diversificado que um indivíduo pode ter fome e andar de automóvel. Para certas pessoas o carro acaba por ser um bem indispensável, mesmo do ponto de vista do seu estatuto social, digamos assim, que não querem perturbar face à sua vizinhança. Portanto, houve um grupo da classe média que passou a viver a um nível mais baixo mas que se adaptou. Uma pessoa pode estar a fazer fila na caixa do supermercado com um carrinho cheio. Mas cheio de quê? — interessa saber.

A sua percepção é que essas pessoas passaram a gastar o menos possível na alimentação...
Mas isso representa uma adaptação.

Uma zona de conforto?
Não digo conforto físico. Conforto mental, diria. Depois, há um grupo de pessoas que está abaixo dessa linha e ultrapassou os limites por várias razões. Normalmente, o que encontramos são misturas de problemas: famílias desestruturadas, problemas relacionados com doenças, desemprego de um membro da família ou mais, as pessoas vivem com ajudas de pais ou de outros parentes e da comunidade... é uma zona cinzenta, nuns casos encontram-se soluções noutros não. Na experiência dos casos que acompanhamos, a conjugação de problemas de doença com problemas financeiros é cada vez mais frequente, o que também tem a ver com uma coisa muito própria desta época: o stress, um stress que é cada vez mais violento.

Isso significa que quando fala de situações de doença se refere a situações de doença mental — depressões, por exemplo?
Depressões mas também outras doenças, que implicam despesa e que as pessoas não têm dinheiro para acompanhar.

E a rede de protecção social?
Não está preparada para responder a estes casos. A rede social que se criou, criou-se com outro estado de espírito e com outras perspectivas económicas e financeiras, não se adaptou às novas realidades. O que nós fazemos com as pessoas que nos procuram, e até entidades patronais que nos procuram para ajudarmos os seus próprios empregados...

Entidades patronais?
Temos empresas que nos contactam no sentido de acompanharmos os seus empregados para apoiarmos os que têm problemas. O que nós fazemos, dizia eu, é um diagnóstico que é muito rigoroso e muito exigente.

E dão apoio alimentar a esses trabalhadores?
Sim. E outros apoios...

E essas empresas que vos procuram, são médias empresas, grandes empresas?
Grandes empresas...

Que têm trabalhadores que estão com dívidas que não conseguem suportar com os salários que ganham?
São pessoas que estão com muitos problemas. Por exemplo: aparecem muitas pessoas com problemas jurídicos, que não sabem resolver nem têm capacidade para contratar um advogado para as ajudar. Nós temos advogados a fazerem gestão eficaz, a baixo custo, digamos assim, dos processos.

Problemas jurídicos relacionados com dívidas?
Podem ser problemas de natureza familiar, ou de dívidas que já estão num patamar jurídico ou até judicial, e que é preciso tratar. Depois, esta medida que ouvimos na Grécia do pagamento da energia... Nós temos imensas pessoas que não têm electricidade, que não têm água, que não têm gás, portanto, vivem num contexto que é difícil para nós compreender. Pagar os recibos em atraso de gás, de electricidade, da água, levar a que as pessoas tenham estes bens essenciais na sua vida é uma questão que se coloca num ambiente de dramatismo humanitário que... a lei já não consegue resolver. Portanto, há uma percentagem elevada da população que caiu numa situação dramática. E que não está naqueles que baixaram de nível de vida, está nos que baixaram abaixo do que seria aceitável.
A ajuda que fazemos passa pela distribuição de bens alimentares, por exemplo, até nas escolas — porque há escolas que sentem que as crianças não têm alimentação suficiente e as escolas não têm meios para resolver os problemas e portanto também distribuímos alimentos aí. Depois, temos os problemas da saúde, as taxas moderadoras, as comparticipações dos medicamentos... Aparece muita gente a dizer: não tenho dinheiro.

E aí o que é que fazem? Pagam os medicamentos?
Se [o problema] é medicamentos, pagamos se a pessoa apresenta a factura. A maior parte do dinheiro que despendemos é por via da apresentação de documentação, quando ela é possível. É difícil pensar que, ao nível de um Governo, de um Estado, se vão encontrar soluções para alguns destes problemas porque eles são muito particulares, é preciso estudar e avaliar caso a caso e encontrar soluções caso a caso. São situações de solidariedade social que as instituições sociais têm obrigação de responder.

Quantas pessoas com carências económicas são apoiadas pela CVP? Penso que falava no ano passado de 50 mil.
Não posso ter uma medida rigorosa.... Ainda há pouco me perguntaram em quanto é que avaliávamos o apoio que tínhamos prestado durante o ano, em euros. Fiz umas contas e cheguei a cerca de 1 milhão e 500 mil euros, aproximadamente, num ano. Pode ser o envio de um pacote de arroz e de leite, como pagar as contas de electricidade, como distribuir roupas. Se somarmos isso tudo, convertido em euros, chegamos a esse número com certa facilidade.

E isso é um gasto superior ao de há três anos?
É. Os alimentos têm aqui um grande peso, quer os que vêm via banco alimentar, quer os que recolhemos directamente — e só as duas recolhas de alimentos por ano que fazemos têm um grande significado.

E o dinheiro que dão às pessoas e com que pagam as contas das pessoas?
Aí é donativos de empresas e até de entidades estrangeiras.

E as receitas próprias da CVP — porque a vossa actividade é muita vasta — são canalizadas de algum modo para os carenciados?
São, por uma via: a despesa com todas as pessoas que trabalham nestas áreas [a CVP tem cerca de dois mil funcionários] e que é muito. Porque temos de ter assistentes sociais, para avaliar e acompanhar, temos de ter os advogados, para tratar dos problemas das pessoas — e se fazem algum pro bono, quando as coisas se tornam sistemáticas, precisam de um mínimo de compensação. Que é muito pouco... dizer que pago 100 euros por um processo ou coisa parecida, nos tempos que correm, não é coisa nenhuma. Mas estes serviços têm um real valor acrescentado para cada uma das pessoas apoiadas.

Disse que o montante gasto em ajudas aumentou nos últimos três anos. Aumentou quanto?
Diria que multiplicámos por quatro, números redondos, o valor gasto com estas áreas.

Por quatro, em três anos?
Acho que sim. De facto, as pessoas precisam muito mais, procuram-nos mais.

O primeiro-ministro Passos Coelho disse que os números divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), há uns dias, que revelam um aumento da pobreza [a percentagem da população com rendimentos abaixo do limiar de pobreza passou de 18,7%, em 2012, para 19,5% em 2013] já não retratam a realidade do país hoje, que a situação terá melhorado desde 2013. Qual é a percepção aqui?
Há um grupo que se adaptou, como referi, outros estão em situações dramáticas que não se resolvem de um dia para o outro. Mesmo que eu tenha um crescimento do PIB, não quer dizer que isso se reflicta naquele cidadão de forma a resolver os problemas concretos que ele tem. Portanto, distinguiria duas situações: o grupo da população que se ambientou, a nível mais baixo, sem sombra de dúvida, e aquele que não tem condições para se adaptar.

Mas esse grupo das situações mais dramáticas já não está a aumentar?
Acho que não tem baixado. E mais, tenho medo de uma coisa: as pessoas equilibradas normalmente têm reservas, uma pequena reserva, e tenho medo que essas reservas se estejam a gastar e que as pessoas fiquem numa situação mais dramática quando as reservas se gastarem. Há também o problema dos idosos. Está um ano frio, se não tenho electricidade não tenho aquecimento. Estes problemas não têm a ver com o PIB no dia seguinte. Mas acho que estas situações são as instituições que podem resolver, não é o Estado. O Estado pode ter medidas genéricas, mas este estudo caso a caso, o Estado tem uma enorme dificuldade em fazer.

O ministro da Solidariedade Mota Soares tem sublinhado muito aquilo que considera ser um “novo paradigma de resposta social” deste Governo e que se baseia num reforço das parcerias com ao chamado terceiro sector [as instituições particulares de solidariedade social, misericórdias e afins]. O argumento é precisamente o de que o Estado não responde tão bem quanto as instituições. O que lhe parece?
Têm sido dado passos, indiscutivelmente. Alguns são... por exemplo, os refeitórios sociais. Nós temos experiência nessa matéria.

A CVP também faz parte da rede de cantinas sociais, programa lançado pelo Governo. Como é que está a correr?
Bem. Em todo o caso, o problema que se põe: as pessoas vêm referenciadas. Será que essa referenciação é correcta, ou está errada porque a pessoa iludiu a entidade referenciadora?

E qual é a sua percepção?
Recordo-me que a certa altura se estimava que os roubos nos supermercados fossem 5%... há sempre 5% de roubos, era a tese quando eu vivia mais próximo desses aspectos.

Mas na sua opinião os níveis de fraude são aceitáveis?
Não tenho razões para pensar que estamos acima dos níveis normais.

Mas então, as cantinas sociais são um bom programa?
Não vou dizer que é um bom programa. Vou dizer que é um programa de recurso, perante uma situação complicada recorre-se a esse meio. Se esse meio, em definitivo, é bom para ajudar as pessoas a resolver os seus problemas, diria que não. É voltar muito atrás na nossa civilização. Recordo-me quando era jovem, morava no Largo de São Vicente e via passar as pessoas pobres do bairro de Alfama a caminho do Campo de Santa Clara onde iam receber a chamada Sopa do Sidónio e depois via-os regressar com meio pão escuro e umas latinhas com a sua sopa. Ora bom, não eram tempos felizes. Hoje, não é a sopa e o pão escuro, o refeitório oferece uma refeição bem confeccionada, na maioria dos casos. Mas dizer “o futuro é este” não parece que possa fazer alguém feliz. Portanto, é uma medida de recurso, para uma situação difícil.

A principal crítica que se faz é que este programa das cantinas foi acompanhado de cortes noutros apoios...
Eu acho que estamos a viver um ambiente de muito comentário à volta dos problemas, muitas vezes sem fundamento e sem conhecimento da realidade. Nós estamos fora disso. A Cruz Vermelha mantém a sua neutralidade e imparcialidade. Uma coisa é o debate político que se vai fazendo, e que tem as suas regras, e outra é a análise da realidade dramática com que nos vamos confrontado.

Com base na análise do terreno que faz, então, o que é que faz falta para lidar com essa realidade?
O modelo que vem do século XX não se adapta às realidades actuais. No âmbito do aniversário dos 150 anos da CVP estamos a propor um conjunto de dez causas, dez temas que achamos que devem ser discutidos. Primeiro: “Os seniores e o direito à dignidade.” Repare, nós não temos experiência nenhuma sobre o que é ter 80 anos, ou 100. Não sabemos como é que as pessoas raciocinam, o que sentem, o que pensam, mesmo os médicos dizem: “Não tenho nenhuma experiência séria, científica, não sei como é que reagem, como é que as doenças se desenvolvem... terei alguma ideia olhando para os doentes com menos 70 anos e aplicando aos doentes com mais de 80 o mesmo critério. Serve? Chegará?”

Será um dos temas que vão lançar para debater neste ano de aniversário.
Sim. Outros temas: “O desemprego.” O século XX foi o século do self service. O século XXI é o século do service. Quantos postos de trabalho se perderam com o self service? Temos de criar emprego para as pessoas, portanto temos de desenvolver os serviços. Depois, “a natalidade” e os desafios que comporta — as baixas taxas de natalidade levam a problemas que tornam esta sociedade muito pouco viável. “O valor social e a protecção das poupanças individuais”, é outro tema — se eu não proteger as poupanças individuais estou constantemente a pedir ao Estado mais e mais.

Como?
O problema das pensões de reforma: há muito que se fala de haver um plafond na segurança social, isso é muito combatido, mas estamos a iludir-nos. Porque quando uma pessoa tem uma pensão de reforma de 6000 euros e recebe 3500 depois da primeira vaga de IRS descontada à cabeça, eu já estou “plafonizado”, só que a contribuição foi por inteiro, não houve plafond na contribuição, só houve na pensão de reforma. As pessoas têm de viver daquilo que pode ser uma segurança social menos ambiciosa, mas também das poupanças que vão fazendo durante a vida e que possibilitam, numa situação de maior idade, de doença, fazer face a um conjunto de encargos mais substancial.

Outros temas?
“O stress” e como lidar com o stress. “O problema da saúde mental”, que em Portugal é muito mal protegido, e aqui é o problema da família e o problema do doente. Outro tema: “A doação de órgãos.” A doação de órgãos reduziu-se drasticamente. Portanto, este tema é muito relevante para garantir que pessoas que podem ter uma vida relativamente normal, a tenham de facto. Depois, oitavo ponto, que é “a morte subita” — continua a ser a primeira causa de morte em Portugal.
Nono ponto: “O voluntariado, hoje e amanhã.” E por fim a violência doméstica. É uma zona onde temos aumentado o nosso trabalho, quer com o transporte de vítimas, quer através da teleassistência. Temos um protocolo com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género e a senhora secretária Teresa Morais. Teremos cerca de duas centenas de pessoas acompanhadas, à volta disso.

Vai haver ao longo do ano conferências, debates...?
Sim, e vamos pedir ajuda aos órgãos de comunicação social para que estes temas ganhem espaço de discussão, e não só, ver se as universidades se interessam por alguns destes domínios e se é possível fazer um debate que nos leve a conclusões, que serão válidas, enquanto forem, claro, mas que pelo menos possam ser eficazes no momento actual.