16.2.15

Opinião pública considera que nível de desigualdade é aceitável

Rosário Lira e António Costa, in Económico on-line

Crítico do processo de ajustamento que aumentou a pobreza, Bruto da Costa reconhece que a sociedade portuguesa está confortável com os actuais níveis de desigualdade.

Alfredo Bruto da Costa é um estudioso da pobreza e diz que, neste momento, não há política social, há políticas assistencialistas. Crítico da estratégia do Governo, o novo conselheiro de Estado admite que o Presidente da República deveria ter mais poderes de intervenção.

O INE revelou que 19% da população estava, em 2013, abaixo do limiar da pobreza, que foi fixado nos 411 euros por mês e Passos Coelho, em resposta, referiu que os números já estavam desactualizados. Estão?

O senhor primeiro-ministro tem razão por um lado, pode não ter por outro. Tem razão, na medida em que os dados estatísticos são revelados dois anos depois do inquérito realizado, portanto, os resultados deste último inquérito são relativos a rendimentos de 2013. Agora, se a situação agora é melhor ou pior, ou tem uma bola de cristal que lhe permite dizer isso ou, então, de facto, não há informações disponíveis. Serão dados muito indirectos, digamos assim. Eu não tenho razões para pensar que a situação tenha melhorado, pelo contrário. É que uma das deficiências da definição de pobreza que a União Europeia publica, é o facto de calcular o limiar de pobreza com base num rendimento mediano. Quando o rendimento baixa, acontece que a linha de pobreza baixa. Baixando a linha de pobreza, temos menos pobres. Portanto, de facto não é a realidade que melhorou, mas um artifício meramente matemático que leva a que a taxa de pobreza seja baixa. Para isso, o INE tem tentado dar outra informação, que é fixar a linha pobreza de 2009 e calcular a evolução com base no índice de inflação. Nessa linha de pobreza, temos taxas de pobreza que vão aumentando e seria, neste momento, de 25,6% e não de 19% e qualquer coisa.

Não era uma inevitabilidade tendo em conta o quadro de ajustamento que passamos que esse índice de pobreza reflectisse esse ajustamento?

Claro. A meu ver, até reflecte mal. O inquérito sobre o qual se baseia o cálculo das taxas de pobreza só abrange pessoas que vivem em agregados familiares. Portanto todos quantos vivem em instituições não são abrangidos pelo inquérito. E sabemos que as instituições de pessoas idosas são uma bolsa grande de pobreza e não fazem parte do inquérito.

Estão mais protegidos nessas instituições...

...Portanto, a nossa taxa de pobreza, em princípio é superior.

O programa de austeridade foi longe demais e não protegeu os mais desfavorecidos?

Li há dias um artigo de Paul Krugman, prémio Nobel da Economia, que diz que a austeridade nos países do Sul da Europa atingiu níveis incrivelmente selvagens. Eu penso que sim. E, por outro lado, pessoas altamente credenciadas dizem que a própria fórmula utilizada foi errada. Custou muito às pessoas e não atingiu os objectivos. Tenho estado a pensar nisto já há uns tempos e sinto que o que se passa na Grécia ajuda-nos um bocadinho a virar o pensamento para o outro lado. Durante estes anos, pensámos muito em problemas de numerário... O que foi grave é que transformamos aspectos instrumentais importantes em finalidades.

Está a falar do défice?

Estou a falar no equilíbrio orçamental. Estou a falar em toda uma inversão da própria filosofia da segurança social, reduzida ao problema da sustentabilidade financeira e não da sustentabilidade social.

Mas é possível ter uma política de luta contra a pobreza e de sustentabilidade da segurança social num Estado que tem contas desequilibradas como tínhamos?

Sim e não.

Como é que é possível? Percebo o ‘não', o sim é que tenho dificuldade...

Isso depende de várias coisas, em primeiro lugar da teoria económica que esteja por detrás. Há cerca de 40 anos, o problema que se punha não era em países europeus, era fundamentalmente o problema dos países em vias de desenvolvimento. E as teorias do Banco Mundial e do FMI levantavam exactamente as mesmas questões que foram levantadas agora. Muito mais recente, fiz parte de um projecto da Unesco que tentava que o Banco Mundial e o FMI introduzissem nos seus contratos de luta contra pobreza nos países pobres a condição de direitos humanos mínimos. Portanto, isto é uma matéria...

Mas no contexto português é possível diminuir estes números de pobreza?

No contexto português levanto duas questões fundamentais. Em primeiro lugar, a sociedade portuguesa contemporizou excessivamente com as desigualdades. Reduzir as desigualdades em Portugal, hoje, é difícil por duas razões. Porque os que retiram benefícios da desigualdade se opõem e porque a própria sociedade, a opinião pública, considera que este nível desigualdade é aceitável. Este é um dos estrangulamentos culturais e de filosofia política, que evita que a gente tenha outras políticas.

Isso é quase chocante...

É chocante, mas é a realidade. O segundo problema é a mesma questão colocada a nível europeu. Não sei se leram o trabalho de Vítor Bento [nr: publicado no Observador], em que diz precisamente isso: houve uma transferência de bem-estar - repare que não foi transferência financeira nem económica no sentido lato, mas de bem-estar - dos países deficitários, designadamente os países do Sul, entre os quais Portugal, para os países excedentários, designadamente a Alemanha. A filosofia política não pode ficar nas finanças, tem de ir ao bem-estar. É outro grau de liberdade. Aliás, só para terminar, em termos de filosofia política e dos valores que estão por detrás da minha filosofia política, devo dizer que sou daqueles que defendem que aquilo que existe no mundo, não só num país, não só numa região, mas à escala global, também pertence a todos. Conforme aceitemos ou não este princípio, temos princípios de quem dá e de quem recebe que podem ser muito diferentes.

Está a dizer que em Portugal não existe uma política social?

De forma nenhuma! O que é a política social? Este é um outro problema. Para mim, a política social tem dois ou três objectivos. O primeiro objectivo é satisfazer as necessidades básicas humanas.

E nesse aspecto tem faltado. Mas já faltava antes do programa de austeridade?

Estou a dizer em termos de objectivos gerais. É que aqui temos dois problemas: um é analisarmos uma situação e dizermos: isto satisfaz ou não. O outro problema é mais grave: é fazermos assistência e dizermos que estamos a fazer política social.

E é isso que está a acontecer?

É isso que está a acontecer, olhemos as cantinas sociais. Há um critério que nos diz muito claramente o que é assistência e o que não é. Em primeiro lugar, quero dizer que não dou uma conotação negativa à assistência. Para mim, a assistência é uma medida tomada para acudir a necessidades urgentes. Se uma pessoa está com fome, a única medida que resolve a fome é dar de comer. Eu não tenho uma ideia negativa da assistência, tenho uma ideia negativa de uma assistência que se torna a regra. Indefinida, duradoura. Porque a assistência, por definição, é transitória. Porque entretanto têm de ser construídos mecanismos que dispensem a pessoa da própria necessidade de assistência.

E foi isso que não aconteceu.

E foi isso que não aconteceu nem acontece. Portanto, um dos fundamentais objectivos numa política social é satisfazer as necessidades humanas básicas. Mantendo um limiar de pobreza aceitável - pode ser discutível, mas aceitável ao nível da opinião pública -, não acredito que em Portugal não possamos ter quase uma sociedade sem pessoas a quem falte o indispensável para viver dignamente.