15.6.16

A guerra da direita contra os pobres e o dever de memória

José Vítor Malheiros, in Público on-line

A direita tenta reescrever a história do seu governo, seleccionando as estatísticas e os indicadores


Um dos exemplos da novílíngua neoliberal que incautamente todos temos vindo a usar nas últimas décadas e que mais me arrepia é a expressão, adoptada oficialmente pela União Europeia e pela OCDE, de “risco de pobreza”. A expressão é lamentável porque é uma expressão tecnocrática, que retira a carga dramática a uma situação de enorme sofrimento físico e moral, que constitui com frequência uma condenação de famílias inteiras a uma pena por várias gerações - porque a pobreza gera ignorância e doença que geram pobreza. Mas, para além disso, é lamentável principalmente porque constitui um manto que cobre e esconde a própria coisa que deveria nomear.

“Risco de pobreza” não só não é pobreza como parece ser o contrário da pobreza. Quem é pobre está dentro da “pobreza”, mas quem está em “risco de pobreza” parece estar ainda fora, talvez à porta da pobreza mas ainda do lado de fora.

Durante os últimos anos ouvi várias vezes lídimos representantes da direita corrigir interlocutores que falavam da “pobreza” em Portugal para recordar que apenas se podia falar de “risco de pobreza”, como se não houvesse pobres. A diferença é tão abissal como sabermos que corremos um risco de ter cancro ou ouvir o médico dizer-nos que temos um cancro. O que acontece na realidade é que as pessoas que consideramos estar em risco de pobreza são de facto pobres, sem eufemismos, verdadeiramente pobres. Todas estas pessoas oficialmente em “risco de pobreza”, vivem de facto na pobreza 24 horas por dia, sete dias por semana, frequentemente com os seus filhos, para quem não vislumbram outra vida que não a mesma pobreza. Todas elas? Sem excepção? Claro que não. A estatística inclui provavelmente dois ou três dirigentes de clubes de futebol que declaram património zero e rendimento zero e que não são realmente pobres. Mas estes casos individuais e isolados, que existem, não desmentem a verdade da estatística - apesar de ser devido à sua possibilidade que se fala de “risco de pobreza” em vez de “pobreza” tout court.

É importante falar de pobreza e daqueles a quem os mais de quatro anos de governo PSD-CDS condenaram à pobreza, enquanto o ministro Pedro Mota Soares batia hipocritamente com a mão no peito, porque a direita continua a não desarmar e a tentar reescrever a história do seu governo, seleccionando as estatísticas e citando os indicadores da forma que mais lhe convém. É importante fazer esse exercício agora, quando o pesadelo PSD-CDS acabou, porque é agora que começamos a ter a leitura completa desses anos de chumbo. Recentemente, o investigador Carlos Farinha Rodrigues, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão e investigador no domínio da pobreza e exclusão, publicou uma análise relativa aos anos de austeridade onde mostrava que enquanto o rendimento dos 10% mais ricos tinha descido 13%, o rendimento dos 10% mais pobres tinha descido 25%. Esse verdadeiro ataque aos mais pobres deveu-se não apenas ao desemprego mas, principalmente, à redução das prestações sociais. Lembram-se de ouvir Mota Soares, Paulo Portas e Passos Coelho garantir e jurar que as suas políticas podiam estar a ser penalizadoras para a classe média mas protegiam os mais pobres? Era mentira. Sabemo-lo agora sem a mínima margem para dúvidas. Uma mentira à conta da qual os banqueiros continuaram a ser protegidos à custa do envio para a pobreza (e não para o “risco de pobreza”) de milhares de famílias portuguesas. É interessante ver o gráfico das perdas dos vários grupos sociais: quando mais pobres, mais perdem. A classe média perdeu? Sim, mas os pobres perdem muito mais. A luta de classes em todo o seu esplendor. Nada que possa fazer Mota Soares perder o sono, antes ou agora.

É igualmente interessante ver as estatísticas de emprego relativas aos anos de austeridade e ver, segundo explica o economista José Reis, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, como o governo da direita destruiu 200.000 postos de trabalho e empurrou 400.000 portugueses para a emigração e como os “programas ocupacionais” do IEFP disfarçaram 170.000 desempregados, colocando-os em trabalhos precários no Estado pagos pela Segurança Social, de forma a matar vários coelhos de uma só cajadada: dar a impressão de que foi reduzido o número de funcionários públicos quando não foi (porque os “ocupados” não contam como funcionários), dar a impressão de que foi reduzido o desemprego quando não foi (porque os “ocupados” não contam como desempregados), dar a impressão de que a Segurança Social tem mais problemas financeiros do que tem (porque os “ocupados” que trabalham para departamentos do estado são ilegitimamente pagos pela Segurança Social) e fazer crer que o desemprego está a aumentar com o actual governo (porque os falsos empregados chamados “ocupados” terminam os seus trabalhos precários e muitos continuam desempregados).

A direita PSD-CDS continua empenhada em reescrever a história do seu governo, para fazer o seu branqueamento e para tentar o actual governo fazer má figura. É importante fazer a história destes anos negros para não repetirmos a experiência.