25.6.18

Os últimos a sair das ilhas do Porto

Célia Soares, in Jornal de Notícias

Onde antes todos os dias "pareciam ser S. João", resta agora o silêncio. E a solidão de quem lá ficou. Conhecer as histórias dos "resistentes" das ilhas do Porto é ver gargalhadas darem lugar às lágrimas em poucos segundos. As portas fechadas e as janelas tapadas espelham bem a dureza da nova vida. Uma vida sem ninguém. Em pleno centro do Porto.

Na cadeira onde se costuma sentar "para sentir o ar da rua", Maria Rosa Azevedo, 84 anos, lembra, "agora mais sozinha", o dia em que se mudou para a ilha da Rua de S. Brás. "Vim para cá quando tinha 22 anos, ainda em solteira, com os meus pais", conta. Naquela altura, "toda a gente podia estar à-vontade". As portas de casa "ficavam sempre abertas". Sem medos. Porque os laços, mesmo não sendo de sangue, eram, garante a moradora, de "uma grande família". Em que todos se ajudavam diariamente, fazendo com que as dificuldades, sendo muitas, parecessem poucas. "Nunca tive uma casa de banho dentro de casa e consegui criar aqui os meus filhos e os meus netos", revela, com orgulho, adiantando que as crianças eram, aliás, "a alegria" de toda a gente. "Ainda por cima, em muitas casas havia mesmo muita canalha", diz, com saudade das brincadeiras dos mais novos, que animavam não só aquela, mas todas as ilhas da cidade.

Com os olhos a denunciarem cada vez mais a "saudade imensa" que há muito sente, Maria Rosa desabafa: "Era uma alegria tão grande, agora está assim...Com o teto a cair de maduro e tudo vazio". Os "catraios" fizeram-se "homens e mulheres". Mas não ficaram. "Quiseram outra vida", explica a moradora, que hoje tem na televisão a sua maior companhia. "Estou aqui muito sozinha. Os tempos mudaram", lamenta. Mudaram-se os tempos, ficaram as memórias.

"Antigamente, todos lavavam aqui a roupa", refere Maria Rosa, apontando para os tanques vazios e visivelmente abandonados no corredor em frente às casas. E, percorrendo esse corredor, lembra quem lá viveu toda a vida. As palavras custam a sair. "Era muita gente... Que alegria... Agora é isto: uns foram morrendo e os mais novos foram à vida deles". A viver sozinha naquele "cantinho", o receio tornou-se uma constante. "Estou no meio da cidade, mas aqui é tudo muito calmo. Não há ninguém. E tenho medo", confessa.

As brincadeiras que nunca faltavam
Na ilha do Cruzinho, na Rua do Campo Alegre, está outro "resistente". Manuel Cunha tem 78 anos e vive com a mulher, Alzira, da mesma idade. A ilha tem 49 casas, mas quem lá entra encontra, sobretudo, silêncio. Onde antes moraram 50 famílias, agora vivem apenas três pessoas - o casal e um vizinho. Mas, do tempo em que aquela rua era "um pequeno carreirinho cheio de gente", não faltam as recordações, que o morador partilha entre muitas gargalhadas. Manuel começa por dizer que, "na altura, as alcunhas eram o pão nosso de cada dia". E apressa-se a dar alguns exemplos. "A minha família era conhecida como a família dos "pessanhas" e a mãe da minha madrasta, que era conhecida como a "Aninhas da Lavadeira", foi a primeira pessoa a vir para cá". Havia, ainda, o "Zé Regador", um "garoto pouco mais velho que costumava alinhar nas brincadeiras".E brincadeiras, assegura, "era coisa que nunca faltava, principalmente na época da desfolhada". À conta das espigas, muitas eram "as malandrices" que se seguiam.

A desculpa, claro, "era sempre o milho rei", que dava o mote para as "marotices entre rapazes e raparigas". As regras do "jogo" permanecem, décadas depois, bem presentes na memória. E o morador desfaz-se em sorrisos ao partilhá-las. "Se o milho rei fosse encontrado por uma rapariga, ela deixava que um dos garotos lhe desse um beijo. Se fosse um rapaz, era ele que tinha de dar um beijo a todas as raparigas". Aparentemente, parece simples. "Mas havia um grande problema", denuncia. É que as mães, que "ficavam à espreita, não achavam graça nenhuma" ao jogo e chegavam a proibir as filhas de irem para a desfolhada, conta, garantindo que "era uma grande risota e, ao mesmo tempo, uma grande complicação".

A festa maior "foi sempre o S. João", mas havia animação durante o ano todo. "Havendo saúde", não faltavam os motivos para comemorar. "O Carnaval então era um grande arraial", conta Manuel, recordando a época em que "do pouco, se fazia muito". É que, apesar das boas recordações, "a vida não era um mar de rosas. As dificuldades eram muitas. "E uma sardinha das mais pequeninas dava para três ou quatro pessoas".

Antes, era uma grande alegria. Mas, agora sou a última. E precisava de uma casa melhor
Quem passa na Rua da Bouça já quase não se apercebe que no número 173 ainda há gente. E a verdade é que naquela ilha só uma das casas permanece habitada. Aos 61 anos, Rosa Ribeiro é a única moradora. E a mágoa que carrega quase a impede de partilhar as histórias da altura em que "todos os dias pareciam ser S. João". As pessoas "eram mesmo amigas e unidas". Prova disso é que "quando alguém trazia o fogareiro e fazia umas brasinhas para os seus, acabava sempre a assar sardinhas para todos", conta, orgulhosa de ter pertencido àquela "grande família". Contudo, o sorriso depressa dá lugar às lágrimas. Por mais anos que passem, "há coisas muito duras", que não se apagam. "As pessoas foram morrendo e eu fui assistindo à morte delas", confessa. Hoje, essas memórias, "o medo de que alguma coisa aconteça" e a falta de condições - ainda não tem casa de banho dentro de casa - fazem com que Rosa queira, também, deixar a ilha onde vive há quase 40 anos. "Antes, era uma grande alegria. Mas, agora sou a última. E precisava de uma casa melhor"