Andreia Sanches, in Jornal Público
Estudo mostra que mesmo numa comunidade cujas práticas são de "ruptura em relação ao contexto social envolvente" imperam os estereótipos mais tradicionais
A "comunidade do graffiti" contesta os valores vigentes, recusa "o conformismo, a regulação e as restrições sociais". Para pintar e para se afirmar, o pintor de graffiti arrisca-se fisicamente, trabalha em locais de acesso quase impossível, em linhas de comboios, túneis do metro, paredes altas... e sujeita-se a ser apanhado pela polícia, porque o que faz é, muitas vezes, ilegal.
E, no entanto, este grupo que rompe com "o socialmente aprovado" acaba por reproduzir "os estereótipos de género mais comuns na sociedade". De tal forma que a afirmação da mulher no meio "parece ser uma "missão quase impossível"".
As conclusões são de Dalila Cerejo, investigadora do Gabinete de Investigação em Sociologia Aplicada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (SociNova). A socióloga entrevistou 16 writers (pintores de graffiti), passou em revista a literatura sobre o tema e estudou uma comunidade cujas "práticas e princípios são socialmente entendidos como marginais". O seu estudo Risco e identidade de género no universo do graffiti acaba de ser publicado pela SociNova.
Dalila Cerejo evita usar a palavra machismo para descrever o que encontrou (ver caixa). Mas um dos writers com quem falou resume da seguinte forma o que pensa do papel das mulheres: "A rapariga gosta de andar maquilhada e a mão não pode andar suja." Não é que esta comunidade questione a capacidade das mulheres para a pintura. "Acho que o graffiti é mais uma cena de homens, é arriscado de mais para as raparigas e elas não gostam de tanta acção e de correr riscos", explica um dos entrevistados.
Manuel Lisboa, que coordena a equipa de investigação do SociNova e que lançou a Dalila Cerejo o desafio de estudar o tema, entende que o aspecto mais interessante deste trabalho é ele revelar que mesmo em "grupos cuja prática de risco pretende ser de ruptura em relação ao contexto social envolvente os modelos seguidos em relação ao que é próprio para homens e mulheres ainda continuam a reproduzir os estereótipos de género tradicionais".
Isto é "um sinal", diz Manuel Lisboa, que revela que há valores que estão de tal forma enraizados na sociedade - mesmo "num dos segmentos onde poderíamos encontrar comportamentos mais desfazados dessas normas" - que quem quiser combater as desigualdades de género, em geral, tem que entender que não chegam "medidas conjunturais", afirma. "É preciso articularmo-nos com outras medidas que vão ao encontro dessa dimensão estrutural que não é visível, mas que está lá", defende.
Perseguição, fuga e risco
Ao longo do seu estudo, Dalila Cerejo - que admite que chega a conclusões que podem ser polémicas no meio sobre o qual se debruçou - descreve esta comunidade onde os seus jovens membros se avaliam entre si e procuram subir numa "estrutura hierárquica" como se fossem um "qualquer trabalhador numa grande empresa".
"A fama, o status e o reconhecimento são os únicos objectivos dos writers", descreve. Isto passa por cumprir uma série de etapas. A um writer não basta saber pintar. E nenhum obterá reconhecimento na comunidade, "se apenas se dedicar à vertente legal", ou seja, a pintar em paredes autorizadas. Afinal, "as raizes do graffiti são a arte de rua ilegal", explica.
É certo que a "sensibilidade estética" é, à luz do "estereótipo da identidade feminina", mais associada às mulheres do que aos homens. Mas a socióloga nota que no universo do graffiti a "performance estética pouco contribuirá para a valorização do writer, se não for conciliada com as demonstrações de valentia ou coragem" - e esses são atributos que o estereótipo atribui ao "domínio masculino".
Acontece que neste meio em especial a demonstração de "atributos e características masculinas assume uma enorme importância simbólica" - de resto, o jogo da perseguição/fuga, do risco, é altamente valorizado, sobretudo pelos mais jovens; para um writer em início de "carreira" fazer pinturas ilegais e arriscadas é a forma mais eficaz de obter reconhecimento pelos pares.
Conta um dos jovens: "Ela queria começar a pintar como muitos outros". E lembra a história de uma rapariga que pintava bem e que se aproximou do grupo dele. "Os primeiros seis meses dela foram do pior, toda a gente a discriminava. Diziam que era a gente que lhe fazia as cenas, que era eu que lhe fazia os desenhos, tudo. Mas ela tinha muito jeito para hall of fame" - parede onde alguns writers se juntam para pintar em conjunto e que, muitas vezes, é legal, o que lhes permite trabalhar com mais tempo e apurar a sua técnica. "O pessoal dizia: "Não é uma miúda que faz isto.""
A socióloga nota que a aceitação da presença da mulher no universo do graffiti só é possível se ela assimilar "valores e atributos tipicamente masculinos". Não há uma segunda via? "Não parece existir espaço de manobra para a mulher writer construir, dentro do graffiti, um percurso diferente ou mesmo paralelo àquele que o homem writer criou e hoje recria", diz.
Mais: a mulher que queira ser reconhecida deve masculinizar-se. Isto significa vestir de forma diferente, estar disposta a usar o seu corpo "como uma arma", seja para fugir da polícia ou de um vigilante, seja "para saltar muros ou arriscar algum tipo de lesão". O maior sinal "da sua aceitação no meio será, porventura, o ser tratada como "um dos rapazes"". Ainda assim, conclui, "não é certa a sua aceitação e reconhecimento".