25.5.15

Modelo de sociedade mais justo é necessário

António Ferraz, in Correio do Minho

Como tenho dito em textos anteriores, com a crise económica e financeira global iniciada em 2008, houve um agravamento (e muito) das contradições inerentes as sociedade e economia de mercado. Desta forma, analisando o que se tem passado na Europa, em particular, na União Monetária Europeia ou Zona Euro (UME), podemos concluir que devido à existência de uma moeda única (euro), de políticas monetária e cambial comuns e de fortes constrangimentos à utilização da política orçamental enquanto instrumento importante de estabilização económica e de redistribuição do rendimento, os efeitos da crise têm sido intensos, em particular, nos países da Europa do Sul, Portugal incluído. E porquê? Porque a UME está longe de ser aquilo que os economistas designam por “Área Monetária Ótima”, dado estarmos a falar em países membros da UME com níveis de desenvolvimento económico muito assimétricos, desiguais. Por sua vez, à crise económica e financeira global veio mais tarde se juntar as chamadas “crises da dívida soberana”, mormente nos países da Europa do Sul, em razão, no essencial, de movimentos especulativos internacionais. A partir daí, seguiu-se a imposição às populações desses países de fortes programas de ajustamento, quer dizer, de medidas de austeridade excessiva, entre elas, cortes de salários e pensões, “enormes” aumentos de impostos, subidas inaceitáveis do desemprego, degradação dos serviços públicos básicos (afetando mais as pessoas com menores rendimentos: saúde, educação, etc.) e restrições cada vez maiores de acesso aos subsídios sociais seja aos trabalhadores desempregados seja às famílias mais carenciadas. Ainda hoje, a bem da verdade, se sentem os efeitos altamente negativos na vida das populações do agudizar da crise da economia de mercado, capitalista após 2008, tais como, níveis de dívida das famílias (e empresas) elevados, níveis de desemprego elevados (tanto mais grave quanto consideremos os desemprego juvenil e de longa duração) e mais pobreza e exclusão social.

Será bom de referir, a propósito, documentos divulgados há pouco tempo quer do INE (Lisboa) quer da Cáritas e o seu “Relatório da Crise da Cáritas Europa 2015”, onde se dá conta claramente do agravar da pobreza, exclusão social e desigualdade quer para Portugal quer para a Europa. No caso português, apesar das recentes previsões de recuperação económica, muito modesta diga-se (0,9% em 2014 e 1,6% em 2015), a verdade é que continua a aumentar a taxa de risco da pobreza e de exclusão social. Esse aumento atingiu mesmo o seu maior valor em 2014, com um aumento em Portugal de 2,1%, seguido da Grécia com 1,1%. A taxa de risco de pobreza e de exclusão social no País era de 19,5% em 2013 (dois milhões de portugueses!). Pior ainda, caso não se considere as “Transferências Sociais do Estado” (subsídios de desemprego e outros apoios sociais), pois em tal caso, o indicador da pobreza subiria para 47,8% da população. Isso mostra certamente a importância do papel do estado na regulação económica e na redistribuição do rendimento! Não deixa isso de ser paradoxal com a visão (neoliberal) do governo consubstanciada na tomada de sucessivas medidas de ataque ao papel fundamental do Estado enquanto garante da coesão económica e social de um país. Registe-se que recentes estatísticas (2014 e 2015) mostram continuar a tendência de agravamento dos indicadores de pobreza e exclusão social.

De igual forma, acentua-se a desigualdade social em Portugal. Somos o segundo país da UE-28 com mais elevada desigualdade social e, ainda, segundo o INE, em 2013, os 25% mais ricos possuíam uma riqueza equivalente a 10% do PIB! Para o aumento da pobreza e da exclusão social muito tem feito tanto a intensificação das dificuldades financeiras das famílias como o número crescente desempregados sem qualquer apoio social (mais de 40% de desempregados). Por fim, merecedor de séria reflexão é o facto de apesar de todos os enormes sacrifícios exigidos à população, Portugal continuar a possuir a segunda maior dívida pública externa na UE-28 (128% do PIB), logo a seguir da Grécia (175%). Este cenário pouco favorável é extensível à própria Europa, assim, de acordo com o documento da Cáritas, existiam na Europa, em 2013, 25 milhões de desempregados (mais 8,4 milhões do que em 2008) e 122,5 milhões em risco de pobreza (25% da população europeia)!
Pensamos, assim, ser necessário que se avance para a construção de um “modelo social mais justo”, que tente dar uma solução face à crise atual. Para tal fim, deveriam ser tomadas medidas visando, por um lado, a garantia de um rendimento mínimo para todas as famílias e que as permitam “viver com dignidade” e, por outro, que as políticas económicas governamentais deixem o foco central na austeridade e se centralizem no crescimento económico e na geração de emprego. Também, é fundamental que a riqueza criada no futuro seja distribuída “de uma forma justa”, que se combata com as fraude e evasão fiscais, que os impostos tenham “taxas justas e equilibradas”, que os sacrifícios, se necessários, sejam, ao contrário do verificado até aqui, equitativamente repartidos pela sociedade e, finalmente, que se dê mais atenção e apoio às famílias mais carenciadas e aos grupos sociais mais vulneráveis. Ainda outra questão importante a reter sobre este assunto é o da qualidade dos empregos disponíveis, onde se deve tornar o emprego tendencialmente permanente, combatendo o flagelo da cada vez maior precariedade laboral, incluindo a atual proliferação de estágios profissionais financiados por fundos europeus (e muito querido pelo governo português), mas que mascaram o volume de desemprego efetivo e possuem efeitos práticos quase nulos na criação de autênticos empregos.

Quer dizer, na construção de um “modelo social mais justo” dever-se-ia ter em conta os seguintes aspectos: (1) que uma economia de mercado livre (capitalismo neoliberal) apresenta, como a história nos tem revelado, ineficiências e falhas. Ineficiências, por um lado, porque a lógica das necessidades da sociedade quase sempre contradizem a mera lógica do lucro privado e, por outro porque a economia de mercado (capitalista) não garante por si só um crescimento económico estável, mas sim, com flutuações cíclicas, e, logo, com fases de recessão económica mais ou menos graves e que trazem consigo todo um cotejo de efeitos perversos: miséria, desemprego, criminalidade e toxicodependência, etc.; Falhas, porque a economia de mercado, capitalista, tende a gera situações de injustiça social ou desigualdade na distribuição do rendimento, de degradação do meio ambiente, etc.; (2) que o Estado deve ter um papel intervencionista e regulador fundamental atuando na estabilização económica e na redistribuição do rendimento, combatendo a desigualdade, a pobreza e a generalização da precariedade laboral; (3) que se fortaleça os sistemas de proteção social de forma a dar dignidade as famílias mais carenciadas e grupos mais vulneráveis da sociedade; (4) que haja vontade política objetivando a estabilidade do emprego e, assim, combatendo a disseminação da precarização laboral e do trabalho temporário; (5) que haja alteração no atual desenho da UEM, tornando-a mais flexível de forma a se obter a tão imprescindível convergência real entre as economias dos seus Estados Membros; (6) que é fundamental para a recuperação económica na Europa a prossecução de grandes projetos de investimento (à escala europeia) financiados basicamente por fundos de origem comunitária; (7) que haja uma mudança fundamental das políticas económicas e sociais internas, tornando-as políticas de “não austeridade”, mais sim, de “crescimento económico e geradora de emprego”; (8) que seja premente o apoio à economia social (terceiro sector).

Encerramos a nossa narrativa citando Bruto da Costa e outros (“Um Olhar sobre a Pobreza”, Gradiva, 2008): “Houve sempre quem considerasse a pobreza como uma fatalidade nas sociedades humanas. Entre os que assim pensam existiu sempre de igual forma quem considerasse que, embora inevitável, deveria ser aliviada. E existiu também sempre quem pensasse que podia ser evitada. Para impedir os efeitos dramáticos pobreza extrema foram criadas, ao longo dos tempos, várias formas de providência ou de apoio social, de iniciativa de associações de solidariedade, de igrejas ou de outras instituições (públicas e privadas). Ao mesmo tempo movimentos sociais têm vindo a protagonizar confrontos interessantes, desde a luta contra a escravatura até aos movimentos operários e populares modernos, de contestação a desigualdade e a pobreza”.