29.11.18

A pobreza na toxicodependência

in Jesuítas em Portugal

Um estágio, num hospital onde 90% dos doentes estavam infectados por VIH e eram toxicodependentes, permitiu a Raquel Borges de Pinho transformar o modo como olhava para esta realidade, curando a sua falta de empatia com aquelas pessoas.

Quase todos nós, de uma forma ou de outra, já tivemos a oportunidade de percepcionar situações, casos, pessoas e vivências em que se manifestou, de um modo claro e evidente, o terrível e doloroso flagelo social da toxicodependência. E demos conta da complexidade das situações, da multiplicidade dos factores e causas, da gravidade das consequências da conduta, da dificuldade em procurar saídas e mudar as coisas.
Pela minha parte, quando tomei contacto com esta realidade, de início, tive imensa dificuldade em compreender o porquê dos comportamentos. Não conseguia ter empatia com estes doentes, nem sensibilidade para criar uma melhor relação médico-doente. Falávamos linguagens diferentes! Foi então que, ainda durante a minha especialidade, decidi fazer um estágio num hospital onde 90% dos doentes infectados por VIH (vírus imunodeficiência humana) eram toxicodependentes. Foi aí que consegui olhar o mundo pelos olhos da droga.

E valerá a pena, mais uma vez, voltar a olhar para o problema e partilhar com os outros, algumas ideias e experiências concretas! A adição à droga é uma situação comportamental que entra na vida das pessoas como qualquer outra doença, como, por exemplo, o cancro. Consome o que existe de bom na vida das pessoas… e nada escapa à sua fúria destruidora, desde a família, o trabalho, os amigos, a saúde e as finanças, etc…
Do ponto de vista físico, a ilusão de bem estar que a droga simula aquando do seu efeito, é tão sedutora como efémera e faz com que as pessoas a procurem, desesperadamente. O problema é que o corpo se habitua rapidamente a funcionar sob o efeito daquela substância, e quando é retirada abruptamente, os sintomas físicos de abstinência são duros de suportar, acabando por criar uma certa necessidade que leva de novo ao consumo. E só os mais fortes e mais resistentes, quer com o apoio de fármacos, quer sem eles, isto é, “a frio”, conseguem manter-se afastados e quebrar essa dependência.

Mas neste ponto temos apenas a adição física, a mais fácil de resolver. É a adição psicológica a mais complicada e a que leva mais vezes ao consumo. Os medos, as angústias, a timidez, os problemas desaparecem naqueles minutos/horas do efeito da droga. Os tímidos tornam-se sociais e faladores, os ansiosos e angustiados, em pessoas calmas e relaxadas. Os traumas do passado ficam guardados no baú e as vozes da culpa silenciam-se. Como me disse uma vez um doente, “as dores da alma desaparecem!”. O mundo fica perfeito e quando voltam à realidade cinzenta e sombria, do mundo e da vida quotidiana, querem regressar desesperadamente.
É a adição psicológica a mais complicada e a que leva mais vezes ao consumo. Os medos, as angústias, a timidez, os problemas desaparecem naqueles minutos/horas do efeito da droga

Do ponto de vista económico é incomportável para qualquer gestão familiar o preço da droga, associado à quantidade e frequência dos consumos. O trabalho que ocupava e realizava a pessoa, anteriormente, passou a ser local e fonte de problemas com colegas e chefias, e insuficiente para pagar as despesas. Inicialmente, e visando aparentar a normalidade, vão tentando manter o mesmo nível de vida, mas depois, assumem a sua adição e entram num caminho descendente. Desapegam-se de tudo o que seja possível transformar em dinheiro/droga, começam a pedir dinheiro emprestado ou adiantamentos por conta do salário, até que, já na última linha do desespero, fica o roubo (tanto a familiares, amigos ou a estranhos) e a prostituição para pagar a dose em falta.

Neste ponto, a saída é difícil de encontrar, como se de um labirinto se tratasse. Fazem várias tentativas para abandonar o consumo sem sucesso, mas nestas tentativas/falhas vão-se afastando de quem os poderia ajudar, só para não ouvir recriminações ou para não terem de confessar o seu fracasso, e isolam-se no seu problema ou procuram, unicamente, companhias similares.

E não há dúvida que, para além de todo o prejuízo causado à própria saúde, à família, aos amigos, enfim, ao mundo das suas relações e amizades, no fim da linha só encontram a sua solidão e a pobreza.

E não há dúvida que, para além de todo o prejuízo causado à própria saúde, à família, aos amigos, enfim, ao mundo das suas relações e amizades, no fim da linha só encontram a sua solidão e a pobreza. Vejo muitas vezes no meu consultório essa pobreza, mas sobretudo, o que me impressiona é uma grande pobreza de esperança! Deixam de acreditar neles próprios, pois já desiludiram tantas pessoas à sua volta, que acham que não são merecedores que tenham esperança e fé neles. Vão-se sentindo pequenos e sem voz, completamente marginalizados.

O milagre acontece quando acreditamos! Quando fazemos ver que é possível todo um caminho e que mesmo que consumam e voltem a cair nas garras da droga, lá estaremos para lhes estender a mão, para os ajudar. Nesse momento, consegue-se que os muros que construíram com o fim de se isolarem das pessoas, comecem a ter pequenas brechas por onde poderemos entrar.

O milagre acontece quando acreditamos! Quando fazemos ver que é possível todo um caminho e que mesmo que consumam e voltem a cair lá estaremos para lhes estender a mão.

Claro que ao longo destes anos, muitas ajudas foram infrutíferas, mas as que resultaram e tiveram êxito, compensam, de sobra, todo o esforço. Por isso, o trabalho tem de continuar. E continuar com mais pessoas, mais gente, mais solidariedade e mais empenho. Entendo que por vezes, as pessoas que não compreendem esta realidade da droga, nem os seus envolventes, preferem afastar-se, mas toda e qualquer ajuda é necessária e muito se pode fazer.

Na minha opinião, uma das propostas a fazer à comunidade, seria motivá-la no sentido de reflectir e agir sobre o problema da droga, imaginar e criar iniciativas de acção concreta junto dos toxicodependentes, em ordem a proporcionar-lhes uma maior inclusão social.

Numa primeira instância, cobrir as necessidades básicas como higiene, alimentação e saúde, principalmente, com apoio psicológico. Existem, espalhados pelo País, centros de apoio à toxicodependência (onde fornecem a metadona), salas de administração, comunidades e clínicas para tratamento da adição. Existem igualmente linha telefónica de apoio à droga, orientada por psicólogos, prontos para ajudar. No entanto, por vezes é necessário ir ao terreno, sair à rua ao encontro da pessoa perdida entre efeito da droga/ressaca, como por exemplo um serviço de carrinha ambulatória com cuidados de saúde básicos, distribuição de comida, roupa e calçado, etc.

Sentindo-se úteis à comunidade e cada vez mais confiantes neles próprios, estariam a dar passos seguros na inclusão e inserção social

Numa segunda instância, pensaria no apoio à família e amigos. Também eles, muitas vezes, sentem-se perdidos, sem saberem o que fazer, desiludidos e com grande sentimento de impotência por não conseguirem tirar o filho, irmão ou amigo daquele martírio. Penso que são peças fundamentais da recuperação do toxicodependente, mas que também elas estão em sofrimento e precisam de ajuda, apoio e enquadramento. Seria benéfica a formação de grupo ou grupos onde poderiam encontrar espaço, informação e conforto para partilharem uma dor comum e auto ajudarem-se mutuamente.

Numa terceira e última instância, pensaria em iniciativas concretas que, compreendendo as limitações de cada indivíduo, lhes permitisse contribuir para a vida em sociedade com trabalhos e tarefas a realizar por eles. Sentindo-se úteis à comunidade e cada vez mais confiantes neles próprios, estariam a dar passos seguros na inclusão e inserção social e cada vez mais longe da droga.