13.11.18

60% dos violadores são íntimos das vítimas

in Expresso

Dormindo com o A na tem bem presente na memória o momento em que uma parte dela morreu. Era de noite e havia um cheiro intenso ao creme de cereja que estava a usar. Sabia que o namorado queria fazer sexo anal, mas não sabia que a ia obrigar.

Resistiu. Primeiro disse não. A seguir gritou que não. “E, depois, sem perceber como, não houve nada a fazer.” Foi como se o corpo cedesse sem querer. “Durante muito tempo não consegui passar na rua da casa dele”, conta três anos depois de ter sido violada pelo namorado.

A maioria das vítimas de violação em Portugal são pessoas como Ana.

Foram abusadas por alguém que lhes é próximo, em quem confiavam. No primeiro semestre deste ano, 59% das queixas apresentadas na PJ referem-se a violações cometidas em contextos de intimidade, seja por namorados, companheiros e maridos (16%), amigos (35%) ou familiares (8%). Estes dados vão no mesmo sentido do Relatório Anual de Segurança Interna do ano passado, que mostrava que 55% das vítimas de violação tinham uma relação com o agressor.

Em 2017, o número de violações aumentou 21,8% face ao ano anterior. E um estudo recente, do Instituto Universitário da Maia, revelou que os profissionais que lidam com vítimas de crimes estão menos preparados para os casos de violência sexual. Por isso, a Comissão para a Cidadania e Igualdade (CIG) prepara um plano de formação nesta área (ver entrevista).
Dentro da violência sexual é ainda difícil perceber que uma violação pode ocorrer num contexto de intimidade.
Ana teve dificuldade em assumir o que lhe tinha acontecido.

“Ele manipulava-me. Dizia que eu tinha um bloqueio. E que todas as mulheres com quem ele tinha estado gostavam.” O problema era Ana. E ela começou a sentir que se tornava dispensável por não querer. Principalmente por lhe dizer não, e logo a ele, “um homem mais velho, tão mais inteligente, tão mais experiente”. Visto de fora, era um namorado “invejável”.

“Eu devia ter estado mais alerta. Sabia, na teoria, o que era uma violação”. Ana voltou para casa, ele pediu-lhe desculpa, explicou-lhe que era normal que, a princípio, ela não quisesse. Disse-lhe quanto gostava dela.
E voltou a acontecer. Outra e outra vez. “Era quase como se eu não pudesse dizer que não.” Como se a palavra ficasse congelada dentro da boca. Até ao dia em que teve uma hemorragia e foi parar ao hospital com fissuras no ânus. Só depois disso apresentou queixa. “Tinha medo que ninguém acreditasse em mim. E como é que eu permiti que aquilo acontecesse?” A pergunta continua a assombrá-la.

Tal como lhe custa pronunciar a palavra violação. “Namorar ou ter qualquer tipo de relação conjugal com outra pessoa é algo que está posto de parte.” Ana deu uma volta à vida. Depois da hemorragia, procurou um psiquiatra que lhe dissesse as palavras óbvias: que tinha sido violada. Passo decisivo.

DE VÍTIMAS A SOBREVIVENTES O médico disse-lhe que não valia a pena apresentar queixa, porque ia ser a palavra de um contra o outro, mas Ana tinha um e-mail com um pedido de desculpas e uma confissão: “Sou um violador”. Com um diagnóstico e uma prova, foi em busca de ajuda mais profunda e chegou ao centro de apoio a vítimas de violência sexual da Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV), o primeiro do país.
Um projeto-piloto, em Lisboa, financiado pelo Governo, que tem sido a âncora de centenas de mulheres, a maioria (60%) violadas por companheiros ou ex-companheiros.
Aqui, as vítimas chamam-se sobreviventes. “Ser sobrevivente tem que ver com o processo de cura e recuperação.

As vítimas não têm de ser vítimas para sempre”, defende Margarida Medina Martins, fundadora da AMCV.

Ao centro chegam diferentes mulheres. Umas apenas querem ser ouvidas.

Outras estão dispostas a litigar. A maioria tem muitas perguntas.

“Cada pessoa passa por um processo único”, diz Alberta Burity da Silva, a responsável pelo projeto. No centro, as mulheres têm ajuda individual, que pode ser feita usando diferentes formas de expressão, como a arte; grupos de ajuda mútua; apoio jurídico e podem ir para uma casa-abrigo. “Deixamos que sejam as mulheres a falar. Há dias em que apenas as conseguimos informar, em que não é possível falar mais com elas, mas pode ser que se abram mais noutro dia”, continua Alberta Burity da Silva.

No Porto, desde maio que a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) tem a funcionar um centro semelhante. “É muito comum a violência e a coação sexual ocorrerem dentro das relações de intimidade”, afirma a coordenadora, Ilda Afonso. As sete mulheres que acompanha estão agora a contar as suas histórias.

“A violência sexual tem como objetivo controlar e humilhar a outra pessoa”, frisa Margarida Medina Martins.

Foi por uma questão de controlo que Antónia sofreu violência física e sexual do marido. Aguentou em silêncio os primeiros 14 anos, o mesmo número que teve de filhos.

Um dia, saiu de casa, no interior norte do país, com os filhos mais novos e pediu ajuda. Arranjaram-lhe uma casa-abrigo no Algarve, porém o marido conseguiu encontrá-la. “Ele foi sempre muito mau para mim, mas acabei por voltar para ele. Foi um erro.” Fê-lo pelos filhos e porque era difícil pagar as contas sozinha.

“Ele mandava em tudo, não me deixava tomar a pílula, não me deixava laquear as trompas.” Tinham relações sexuais quando e como o marido queria.
Mas Antónia nunca pensou na palavra violação. “Ele fazia coisas horríveis, doía muito.” Antónia começou por ligar para o centro da AMCV. Foi-se abrindo de telefonema em telefonema. O primeiro passo foi voltar para uma casa-abrigo.

“Vou na rua e tenho medo que ele apareça de repente.” Era hábito ir buscá-la, durante o dia, e levá-la para uma casa abandonada perto do campo onde trabalhavam. “Estava sempre bêbado. Tinha muita força, abria-me as pernas, punha-me os joelhos contra o peito e eu não conseguia reagir.” À violação seguia-se pancada e vice-versa.

“É muito comum, mas as mulheres não lhes chamam violação”, diz Daniel Cotrim, psicólogo e assessor técnico da direção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Na rede de casas abrigo que coordena, é frequente as vítimas contarem que tinham relações sexuais como forma de os agressores deixarem de lhes bater. Quando se dá o nome de violação, o primeiro sentimento é de repulsa. “Porque há a ideia de que o corpo pertence ao marido e que a função das mulheres é servirem o marido”, frisa o psicólogo.

Só que a confiança e a intimidade não se resumem a maridos e namorados. Andreia tinha um melhor amigo feito nos bancos da faculdade. Eram parceiros de grupos de estudo, passavam tardes e serões juntos.
Depois de uma noite com muito álcool, Andreia acordou sem os collants. “Não sabia se era verdade ou se tinha imaginado, mas tinha na cabeça imagens aos beijos com ele.” Confrontou-o e ele justificou-se dizendo que tinham tido relações sexuais. A revelação foi o início de um calvário para tentar explicar à justiça que se trata de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.

Tal como o caso da jovem violada enquanto estava inconsciente por embriaguez e que, recentemente, o Tribunal da Relação do Porto desvalorizou considerando ter havido “um clima de sedução mútua”, também a violação de Andreia ocorreu numa zona de bares em Vila Nova de Gaia. “Estamos a perceber que há mais casos na zona. E que os agressores são pessoas que conhecem as vítimas”, frisa Ilda Afonso.

Andreia perdeu “uma parte da ingenuidade” naquela noite. Está cheia de “raiva” para seguir com o processo. E com pressa de se “reconstruir” quando “tudo” acabar.
“Cada pessoa tem o seu tempo. O importante é encontrarem um espaço seguro onde possam falar para se libertarem”, frisa Alberta Burity da Silva.

cbreis@expresso.impresa.pt * O nome das vítimas foi alterado para proteção das próprias Maioria dos crimes ocorre no círculo íntimo das vítimas. Governo prepara plano de formação para profissionais de saúde e polícias.
Reportagem no primeiro centro para vítimas de violência sexual Textos Carolina Reis Ilustração Alex Gozblau QUASE 60% DAS VIOLAÇÕES SÃO COMETIDAS POR COMPANHEIROS, AMIGOS OU FAMILIARES DAS VÍTIMAS CINCO PERGUNTAS A P A quem se destina este plano de formação? R Aos profissionais da Administração Pública Central provenientes de cinco sectores: educação, forças de segurança, justiça, saúde e segurança social. Pretende-se que aprendam a reconhecer, no contexto da sua intervenção, a problemática da violência sexual nas relações de intimidade. E adequar as suas atitudes, respostas e comportamentos à problemática. O projeto pretende a consciencialização do fenómeno e envolve, diretamente, cerca de 2500 profissionais. Mas, a longo prazo, considera-se que a população-alvo indireta que vai beneficiar do projeto através dos pares chegará aos 126 mil profissionais.
P Quanto vai custar este projeto? R O valor global, financiado pela Comissão Europeia, é de 216.900 euros.

P Em que fase está a implementação do projeto? R Neste momento, encontramos-nos em reuniões de preparação das ações de capacitação, quer com os parceiros da Administração Pública Direção-Geral da Educação, Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, Direção Geral da Saúde, Instituto de Segurança Social quer com as organizações da sociedade civil e as ONG convidadas a implementar este trabalho.

Marta Silva Responsável na CIG pela área da violência sexual P Um estudo recente do Instituto Universitário da Maia (ISMAI) revela que várias áreas da Administração Pública, nomeadamente os profissionais de saúde e as forças de segurança, têm dificuldade em lidar com vítimas de violência sexual. O Governo vai intervir a este nível? R Sim. Após o estudo de diagnóstico das crenças e atitudes dos profissionais quanto à violência sexual nas relações de intimidade, realizado pelo ISMAI, desenvolvemos um plano de capacitação e todo o projeto é desenhado em função das características e necessidades específicas identificadas.

P Mas como será na prática? R As ações de formação, que são a segunda fase do projeto, irão decorrer de dezembro de 2018 a fevereiro de 2019. O formato será replicado por todo o país e consiste, genericamente, em reunir cerca de 50 profissionais, por ação, em plenário e em grupos de trabalho, com temas específicos fundamentados nas realidades regionais e sectoriais.

A terceira fase implica a produção de materiais informativos e de sensibilização publicados em março que consistirão numa campanha de sensibilização e informação para cada grupo profissional. Esta última atividade irá envolver todas as entidades que participaram no projeto.

INVESTIGAÇÃO VIOLÊNCIA SEXUAL Só 7% dos condenados por violência doméstica cumpriram pena efetiva Desde 2010 e até ao ano passado, 10.940 arguidos foram condenados por violência doméstica, mas apenas 723 cumpriram pena de prisão efetiva, de acordo com as estatísticas do Ministério da Justiça. Ou seja, apenas 6,6% dos agressores passaram algum tempo na cadeia durante os últimos oito anos.

No ano passado, apenas 119, num total de 1457 agressores, foram condenados e cumpriram pena efetiva por abusarem física e psicologicamente dos seus companheiros ou ex-companheiros. Em prisão suspensa ficaram 1287 condenados, outros nove pagaram uma multa, sete foram internados e 13 fizeram trabalho a favor da comunidade para evitar a prisão.

Mesmo assim, apesar da baixa percentagem de prisão efetiva neste tipo de crime, regista-se uma subida de 4,8%, em 2010, para quase o dobro (8%) no ano passado. Em 2010, num total de 1101 agressores, apenas 53 tiveram prisão efetiva; a esmagadora maioria (993) ficou com pena suspensa, enquanto 30 pagaram multa e nove trocaram a cadeia por trabalho comunitário.

Estes números vão no mesmo sentido das condenações na área da violência sexual, mostrando uma desvalorização deste tipo de crimes. Ainda de acordo com o Ministério da Justiça, entre 2010 e 2016, último ano com dados disponíveis, 176 homens condenados pelos crimes de violação, violação agravada e abuso sexual de pessoa incapaz de resistência ficaram fora das prisões, o que representa 30% do total de condenados. Em média, 25 violadores ficam em liberdade todos os anos.

Um estudo lançado esta semana pela Comissão para a Cidadania e Igualdade (CIG) destaca que o número de condenações em violência doméstica ainda fica bastante aquém das participações registadas pelas forças de segurança. No ano passado, só 5% das 26.713 queixas apresentadas nas forças de segurança resultaram em condenações.

Violência doméstica e violência sexual são ainda crimes difíceis de provar. E muito mais quando se cruzam, isto é, quando em casos de violência doméstica existe violência sexual. “Não é que seja desvalorizado pelas forças de segurança no momento da queixa, mas é algo que não é abordado. Mesmo as mulheres não se queixam logo. É preciso ouvi-las, criar um ambiente de empatia e de confiança para que possam contar o que lhes aconteceu”, explica Daniel Cotrim, psicólogo e assessor técnico da direção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.

MORTES AUMENTAM Depois de quatro anos a descer, as mortes de mulheres vítimas de violência doméstica subiram.

Segundo o Observatório de Mulheres Assassinadas uma iniciativa da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) até setembro foram mortas pelos companheiros ou ex-companheiros 21 mulheres, mais uma do que no ano passado.

“A violência é muito complexa e tem vários fatores e dimensões.
É comum a coexistência de diferentes tipos de violação, a física, a psicológica e a sexual, sendo esta última a menos valorizada”, frisa Elisabete Brasil, responsável pelo Observatório da UMAR.
Os números parecem contraditórios com o investimento feito em meios de apoio às vítimas e em políticas públicas nos últimos anos. Ainda segundo a CIG, o financiamento da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica aumentou 42%. As casas-abrigo têm hoje mais vagas, com um aumento de 8% de capacidade. E o número de vagas para acolhimento de emergência subiu 14%.

As medidas de prevenção e combate também têm aumentado. O número de mulheres com teleassistência uma medida de apoio eletrónico para as vítimas que funciona como uma espécie de “botão de pânico” subiu de 302, em 2014, para 1060, no último ano. Já a vigilância eletrónica que controla à distância a proibição de contactos entre agressor e vítima quase que duplicou, subindo de 313 para 603 nos últimos quatro anos.

Maioria das queixas fica pelo caminho. Em 2017, apenas 5% de todas as participações acabaram em condenação FENÓMENO 723 agressores (6,6%) cumpriram pena de prisão efetiva por violência doméstica, num total de 10.940 condenados entre 2010 e 2017 176 homens condenados entre 2010 e 2016 pelos crimes de violação, violação agravada e abuso sexual de pessoa incapaz de resistência ficaram em liberdade 5% das 26.713 queixas de violência doméstica apresentadas no ano passado resultaram em condenação 21 mulheres foram mortas pelos companheiros e ex-companheiros entre janeiro e setembro deste ano