21.2.20

Estudo revela que raspadinhas estão a tornar-se vício preocupante em Portugal e apela a nova regulamentação

Helena Bento, in Expresso

Portugal é o país da Europa onde se gasta mais dinheiro em raspadinhas. Só em 2018 os portugueses gastaram quase 1,6 mil milhões de euros neste jogo - são mais de quatro milhões de euros por dia (há casos de portugueses a gastarem 500 euros em 24 horas). O problema tem sido “negligenciado” e urge impor medidas para regulamentar o jogo, diz ao Expresso o psiquiatra Pedro Morgado, autor do estudo publicado esta quinta-feira na revista “The Lancet Psychiatry”

Comprar raspadinhas para tentar ganhar dinheiro é um ato tão banal que quase já faz parte do quotidiano, mas um relatório divulgado esta quinta-feira, da autoria de dois investigadores da Escola de Medicina da Universidade do Minho, e publicado na revista internacional “The Lancet Psychiatry”, mostra uma realidade bem mais preocupante do que isso. Em 2018, os portugueses gastaram quase 1,6 mil milhões de euros em raspadinhas - 4,4 milhões por dia, em média. O número é, em si, muito elevado, mas ainda mais se comparado com dados de 2010, em que foram gastos 100 milhões de euros neste jogo. E também se comparado com países como Espanha, onde foram gastos cerca de 600 milhões de euros em 2018.

De acordo com Pedro Morgado, um dos autores do estudo, e psiquiatra no Hospital de Braga, Portugal é, aliás, o país da Europa onde se gasta mais dinheiro em raspadinhas per capita, correspondendo este valor a mais do dobro da média europeia. Uma das perguntas que se coloca de imediato é — mas porquê? E embora a resposta não seja definitiva, o problema pode ser justificado assim: “Em primeiro lugar, trata-se de um jogo facilmente acessível, sem qualquer controlo, um jogo popular e com boa imagem. Ou seja, ninguém se sente envergonhado por comprar raspadinhas”.

Outro aspeto tem que ver com a “falta de literacia sobre os riscos” deste jogo em concreto. “Não passa pela cabeça da maioria das pessoas que podem ficar viciadas”, diz o investigador, para quem o facto de se saber imediatamente qual o resultado do jogo, e se se ganhou um prémio ou não, “faz com que haja um maior potencial de vício e de adição”. Finalmente, há ainda a considerar aquilo a que se refere como o contributo dos meios de comunicação social para o problema. “São publicadas muitas, muitas notícias sobre casos concretos e que passam a ideia de que se pode ganhar muito gastando pouco, e isso ajuda a criar uma ideia distorcida da probabilidade de ganhar”, aponta.

“No caso das raspadinhas, não há quaisquer mecanismos para proteger as pessoas”
Pedro Morgado não tem dados sobre quantos portugueses compram, de facto, raspadinhas, e até admite que “possa haver um elevado número de pessoas que jogam muito” e que “a maioria das pessoas que joga não tem um problema de adição”. “Ainda assim, parece haver, em Portugal, uma maior apetência para este tipo de jogo no que no resto da Europa” e, por isso, “era expectável que entidades com responsabilidade neste jogo tivessem curiosidade em perceber se existem ou não problemas de dependência”.

Algo que, na realidade, não acontece porque “não existe nenhuma estratégia para entender por que razão os portugueses jogam tanto, nem foi ainda realizado qualquer estudo epidemiológico para perceber a magnitude do jogo patológico associado às raspadinhas”. “Tudo indica que o problema pode ser muito importante mas precisamos de o quantificar.” Além disso, diz, “não existem quaisquer medidas no sentido de controlar os problemas que podem derivar dessa adição”. Refere-se, em concreto, à possibilidade de criar um mecanismo que permita à pessoa autoexcluir-se de jogar, através, por exemplo, da criação de um cartão do jogador. “Eu não sou a favor da proibição”, esclarece, “mas sim a favor de se dar às pessoas a possibilidade de se excluírem de jogar, como acontece noutros jogos, como os jogos de casino, em que há um risco elevado de desenvolvimento de doença associada à dependência”.

No caso do jogo do casino, compara ainda, “também não há estudos epidemiológicos que permitam perceber qual a dimensão do problema, mas os doentes com um problema de jogo patológico podem requerer inibição de entrar nesses locais”. “Neste caso não há mesmo quaisquer mecanismos para proteger as pessoas e as pessoas que atendo no consultório não conseguem controlar o acesso às raspadinhas dos seus familiares dependentes”.
“Há pessoas que gastam 500 euros num dia em raspadinhas”

E isso leva-nos para a sua experiência clínica e para os casos que tem atendido. “Às vezes recebo pessoas que gastaram todas as poupanças da sua vida nas raspadinhas sem que nenhum familiar se tivesse apercebido. Ou pessoas que pediram emprestado dinheiro a vários familiares dizendo que era para outros fins que não o jogo, como tratamentos no dentista ou para pagar o arranjo do carro.” Pedro Morgado conhece ainda casos de pessoas que gastaram “500 euros num único dia em raspadinhas” ou “20 a 30 mil euros” ao longo de um ano. “São pessoas que jogam todos os dias e gastam por dia cerca de 100 euros. Há várias pessoas com adição que compram mais do que 10 raspadinhas por dia, ou só de uma vez ou em várias idas à tabacaria ou ao local onde elas são vendidas. Estão sempre na expectativa de que vão ganhar e se não for agora é na próxima vez ou na próxima ou na próxima.”

E, normalmente, não são as próprias pessoas que pedem ajuda, mas sim os seus familiares, que, “apercebendo-se de que o dinheiro está a ser todo gasto, convencem-nas a vir à consulta”. Não há pessoas mais afetadas que outras em termos de sexo ou idade ou outros parâmetros, diz ainda o psiquiatra, segundo o qual o problema está presente “tanto em homens como mulheres, e nas várias idades”, ainda que “havendo uma ligeira prevalência entre as pessoas com idades mais avançadas”. “Os mais novos podem ter outro tipo de adições mais relacionadas com o jogo online e, pelo contrário, os idosos têm menos experiências em jogos online, sendo as raspadinhas um jogo muito popular nesta faixa etária.”

Além de mais controlo e mais estudos e investigação, Pedro Morgado fala também em prevenção, através da divulgação de “informação sobre os riscos associados” e de “sensibilização junto dos meios de comunicação social no sentido de não publicarem tantas histórias de grandes ganhos com pequenos investimentos”. A publicidade a estes jogos também é algo que deveria ser repensado, diz o investigador. Que faz um apelo: “A verdade é que Portugal tem as taxas mais baixas da Europa em termos de toxicodependência, o que se explica pelas políticas públicas que foram adotadas no país. O mesmo terá de ser feito para este problema em concreto e esse é o nosso apelo. São necessárias políticas públicas para diminuir os problemas associados às raspadinhas”.