20.2.20

Mandem aí umas bananas biológicas, que eu como

Marisa Morais, in Público on-line

Num tempo em que a inclusão é palavra da moda, a exclusão é prática social constante. O racismo é uma das formas em que se apresenta. Tem de ser combatido. Em todos os domínios da vida social. No futebol também.

Obrigada, Marega, pela lembrança de que não somos obrigad@s a suportar o racismo e que não temos de ser menin@s bem-comportados quando nos faltam ao respeito. Não temos de contemporizar e podemos ficar agastados e irritados.

Fico irritada com a sistemática e desculpabilizante desvalorização que surge sempre que se fala de racismo. Pode não ser generalizado, mas existe e é gritante o esforço que fazem para normalizar atitudes e comportamentos racistas.

O jogador provocou comentários que podem ser traduzidos num “O preto portou-se mal, a culpa de sermos racistas é dele”. Na mesma linha, mais discretos, mas mais insidiosos, os que apontam exemplos de jogadores que, em circunstâncias similares, se mantiveram no relvado, algo que pode ser traduzido como “Não sejas chorão, outros passaram por isso, não fizeram fita e até comeram a banana”. A talhe de foice: o sarcasmo do Daniel Alves foi brilhante, mas duvido da capacidade dos destinatários da mensagem para a compreenderem.

Os comentários clubísticos, como se fosse problema do clube A ou Z, envergonham-me. Quem acredita que ser adepto de um clube implica odiar os outros clubes, ódio que transfere para os protagonistas do espetáculo, merece atenção por questões que extravasam o racismo e não cabem neste artigo, apesar das relações intrínsecas que possam ser encontradas.

Nesta feira de frustrações de que a indústria paralela ao futebol se alimenta, ouvir comentadores como o Rui Santos na noite de domingo foi um must. Impagável a superioridade ética de quem é lesto a defender a necessidade de verdade desportiva, num qualquer fora de jogo de centímetros em microssegundos, mas lerdo a reconhecer que é tempo de dar um basta a estas situações que não se tornam toleráveis por serem corriqueiras.
Tão difícil de admitir que o racismo e o preconceito existem. Tão difícil reconhecer que sujeitar um ser humano a um coro de insultos com base na cor da pele é errado. Tão errado como se na base desses insultos estivesse o género, a orientação sexual, ou qualquer um dos fundamentos que servem de veículo ao preconceito.

Centrar a questão na reação do jogador é duma vacuidade e hipocrisia que choca, porque ignora e desvaloriza as atitudes racistas com que foi confrontado uma e outra vez. Condena a emoção de quem sofre com comportamentos criminosos. Espera um comportamento elevado e superior da vítima em circunstâncias em que a sua dignidade é deliberadamente posta em causa. Porquê? As vítimas têm o dever de suportar com elegância e elevação a agressão?
Pode até acontecer, e tem acontecido, que jogadores nas mesmas circunstâncias se mantenham em campo. Mas não são obrigados a isso; têm o direito e a legitimidade de abandonar o jogo e expressar sentimentos. Pelos vistos, esse direito, para ser exercido, deve ser acompanhado por um discurso bonito, preparado para não ferir suscetibilidades e facilitar o continuar a ser considerado preto bom. De certeza que não querem mais nada? Caramba! Mandem aí umas bananas biológicas, que eu como. Mandem às paletes. Prometo comportar-me, não mostrar o dedo médio e não dizer palavrões.

Subscrevo as palavras do pivot da SIC, foi uma atitude corajosa, plena de carácter, inédita em Portugal, pouco frequente por esse mundo fora, apesar da recorrência de situações em que podia e devia acontecer. Porque não é, nem nunca será fácil, para qualquer que seja o atleta, abandonar um jogo, a não ser nos limites em que se defronta consigo próprio enquanto ser humano. As atitudes racistas cansam, degradam e desgastam.

Escrevo de novo: o racismo existe na sociedade portuguesa. Por isso mesmo também se mostra nos estádios. Não é uma realidade que surge nos estádios, reflete a realidade existente. Qualquer negro que praticou ou pratica desporto em Portugal sabe que a distância que vai do bestial ao “filho da p*#a do preto” são dois passos. Nada de novo a oeste ou a este, tanto a sul como a norte mais do mesmo, sempre do mesmo. Criaturinhas pequenas num mundo pequeno, parafraseando um escritor português. Não tem de ser assim. Mas muito se faz para que assim seja e por quem tem responsabilidade para que seja diferente.

Recentemente, um deputado português afirmou publicamente que uma deputada portuguesa negra devia ser devolvida. Este é o exemplo que vem da instância que supostamente nos representa e representa a democracia portuguesa.
O mesmo deputado veio ontem afirmar que o caso do Marega não foi racismo, afirmação que certamente fundamenta nas inúmeras vezes que foi alvo de preconceito, não pelas suas opiniões, mas pelo facto de ser mentecapto. Um coro de “preto do…” não é racismo, se calhar expressa opinião sobre as competências profissionais. Algo me diz que ouvirei este deputado afirmar que as mulheres são violadas porque se rebolam ou são bonitas e que o agressor se limitou a reagir aos estímulos.

A lei permite uma reação severa no plano desportivo e espero que ela aconteça. No plano criminal, espero que haja atuação, mas não será por aí que se resolve. As mudanças têm de acontecer na sociedade portuguesa e punir nunca é suficiente quando se trata de mudar mentalidades. Trilhar o caminho da naturalização e desculpabilização das atitudes racistas ou contrapor que os portugueses não são genericamente racistas (e não são, embora muitos padeçam de superioridade cultural) ou ainda, como alguns gostam, comparar com outros racismos é perpetuar o preconceito.

Num tempo em que a inclusão é palavra da moda, a exclusão é prática social constante. O racismo é uma das formas em que se apresenta. Tem de ser combatido. Em todos os domínios da vida social. No futebol também. Começando nos escalões infantis, banindo os papás e mamãs useiros e vezeiros nos insultos às equipas adversárias e até aos jogadores da sua equipa quando falham um golo ou o filhote perde lugar para o preto. Sim, continuo irritada com a hipocrisia generalizada.

Um lembrete aos fundamentalistas do costume: não esqueço que não é um exclusivo da cor. O facto de salientar um aspeto não quer dizer que ignore os outros. Esta é uma das facetas que sobressaem sempre que se pretende debater o racismo. Também não é exclusivo da temática, por paradoxal que pareça o maniqueísmo que parece fazer escola em tempos marcados pela globalização e acesso fácil à informação.


Uma ambição medida em centésimas
O racismo existe em Portugal. As cortinas de fumo impedem um debate sério, condicionam as condenações de atos e práticas discriminatórias e, por isso mesmo, é fundamental quebrar o silêncio e adotar uma postura ativa que deixe claro que ações racistas ou que tenham na base um qualquer preconceito não são admissíveis na sociedade portuguesa ou em qualquer outra.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico