20.2.20

Violência sexual: “Podia proteger o meu filho e não consegui fazê-lo”

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

Leonel tinha 15 anos quando contou à mãe que tinha sido alvo de abusos. Lara nunca conseguiu falar sobre o assunto com a família. Num caso, o abusador está preso, no outro está em liberdade a aguardar decisão do recurso. Seminário da APAV sobre vítimas de abusos realiza-se esta quinta-feira em Lisboa.

Quando o filho adolescente lhe disse que tinha uma coisa para lhe contar, Marília foi levada a pensar que era mais um disparate sem consequências. Um daqueles que não deixariam mágoa, nem dor, nem culpa, nem vergonha. Enganou-se.

A partir daí, o filho, então com 15 anos, perdeu-se no consumo de álcool que misturava com comprimidos, e no haxixe. Não falava, não saía do quarto. “Consumia para esquecer.” Desistiu da escola. A revolta assumiu formas destrutivas e autodestrutivas de descontrolo e agressividade, conta a mãe.

De facto, a urgência que Leonel incutiu nas palavras, quando foi ao trabalho dela perguntar-lhe a que horas sairia, deixou-a pensativa. “Ele estava branco quando me apareceu no trabalho”. Mas porque haveria Marília de pensar o pior? Esperaria calmamente o que Leonel tinha para lhe dizer.

Desde os 11 anos, Leonel ia para casa de um vizinho mais velho, amigo dos pais. Nessa casa na mesma rua onde Leonel vivia, o adulto sentava-o a ele e três outros rapazes a ver filmes pornográficos. Abusava deles sexualmente. As idas a casa dele começaram por ser do conhecimento dos pais, porque o adulto de 65 anos, que vivia sozinho, era uma pessoa de confiança, ajudava em coisas da casa, era afável, disponível, recorda Marília. “Os miúdos lanchavam em casa dele e depois iam para os treinos de futsal com ele.”

Humberto, que veio a ser condenado a dez anos de prisão efectiva por nove crimes de abuso sexual de crianças em Outubro de 2017, conquistara a simpatia e a confiança de todos. Hoje está preso. O convívio com os rapazes, envolto numa falsa inocência, entrou numa rotina estranha – uma rotina que os miúdos não questionaram, nem denunciaram.

Medo do impacto
A razão para não o fazerem depende da idade das crianças, explica Carla Ferreira, gestora do Programa CARE de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, criado em 2016 pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). O seminário Passado, presente e futuro do apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual – o papel do Projecto CARE ​realiza-se esta quinta-feira em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, um dos financiadores do programa juntamente com a Iniciativa Portugal Inovação Social.

Em quase todas as idades antecipam o impacto de uma eventual revelação na família, continua a criminóloga. “Nalguns casos, não querem desestruturar a família. Têm receio de como os pais ou os seus cuidadores se vão sentir. Quando são mais pequenos, temos situações em que dizem que não perceberam que era errado. Não entendem o comportamento do adulto como problemático. Os mais pequeninos não têm nem sequer forma de relatar o sucedido”, conclui.

No caso de Leonel, que sofreu abusos entre os 11 e os 15 anos, a mãe arranjou a sua própria explicação, embora admita outras. E diz que pode ter sido por Humberto, o abusador, ser amigo do pai. Por muito estranho que possa parecer, explica Marília, ele tinha medo de desiludir o pai.

A falta do pai
Em miúdo, Leonel sentiu a falta do pai que trabalhava em turnos nocturnos, num quotidiano desencontrado do dele. E quando fez 13 ou 14 anos, foi como recuperar o tempo perdido. “O pai acompanhava mais o filho e ele não queria deixar de ter aquela companhia, não queria desiludi-lo.”

“Eu podia proteger o meu filho e não consegui fazê-lo”, diz Marília sem saber de que forma poderia ter impedido o pior de acontecer. Nunca desconfiou de nada. Leonel não vinha triste ou perturbado quando regressava da casa dele ou dos treinos de futsal que Humberto se encarregava de dar aos miúdos, de forma amadora num pavilhão da cidade e noutro pertencente à escola secundária.

O pretexto para Leonel frequentar a casa de Humberto começou por ser o computador, porque o miúdo tinha jeito para a informática. Foi ele quem abriu a conta a Humberto no Facebook através da qual o adulto passou a falar directamente com os miúdos, sem o conhecimento ou a interferência dos pais.

Na Polícia Judiciária, esteve cinco horas a falar. Entre os amigos que tinham sido vítimas nem todos tinham o apoio da família para irem para a frente com uma denúncia que levasse a uma condenação. Quando saiu, apenas disse à mãe: “Que não seja só por mim, que seja também pelos outros.”

Marília sabe que a ela o filho não lhe disse tudo como se ele próprio duvidasse da capacidade do adulto de aguentar toda a verdade. Hoje com 19 anos, Leonel refaz a sua vida e já é pai.

Do Porto a São Miguel
Ao contrário de Leonel, Lara não disse a ninguém, nem à mãe. “A Lara foi sexualmente violada pelo treinador de basquete”, diz Júlia. A mãe cruzava-se todos os dias com ele quando este ia tomar o pequeno-almoço no minimercado onde Júlia trabalhava na altura dos abusos do treinador a várias meninas entre 2013 e 2018 nos Açores.

Os treinos de basquete, do Clube Operário Desportivo de São Miguel, realizavam-se em vários dias da semana – sempre à noite. As meninas vinham de carrinha por volta das 22h30. Chegaram a participar em estágios em Lisboa ou noutra cidade do continente. “Uma pessoa nunca imagina que uma situação destas possa acontecer na nossa família”, diz Júlia.

Histórias que se cruzam: Sinaga, o violador de homens, e Ângelo Fernandes, o activista que defende as vítimas
“Só percebi quando me apareceram à porta dois polícias da PJ para eu prestar declarações e dizer o que sabia daquele homem.” Lembra-se que ele se mostrava preocupado com as atletas em várias ocasiões. Não lhe sai da cabeça um episódio em particular que só agora, em retrospectiva, consegue associar ao que se passou: quando o homem lhe disse que a filha, Lara, aparentava estar triste e tentou saber a razão. Ficou então a saber que o pai de Lara tinha saído de casa deixando a mãe sozinha a cuidar de cinco filhos. “O pai das crianças abandonou-nos.”

O agressor passou a saber quem no grupo das atletas “era mais vulnerável”, salienta a mãe de Lara. Com 30 anos ou pouco mais, solteiro, o homem não era dos Açores e nunca mais foi visto em São Miguel.

Em liberdade
“A condenação era o que eu mais queria”, frisa Júlia. Houve condenação, em Outubro de 2019: oito anos e quatro meses de prisão efectiva e proibição por dez anos de exercer funções que impliquem o contacto com crianças. Actualmente, porém, o homem está em liberdade, a aguardar decisão do Tribunal da Relação de um recurso que apresentou. “Eu julgava que ele estava preso.” Na família, foi um choque saber que não estava.
O processo judicial foi longo e duro, sobretudo para Lara. Começou com uma denúncia anónima, mas obrigou as vítimas – como ela – a recordar em pormenor a violência que sofreram.
A mãe não conseguiu ler até ao fim o testemunho que a filha fez na PJ de São Miguel nos Açores​. Começou a ter pesadelos. Seja como for, diz: “Este é um assunto que vai estar sempre presente na nossa vida. Não vai ser apagado.”

1167 crianças e jovens foram apoiados entre 2016 e 2019 pelo Projecto CARE criado pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Trata-se de apoio jurídico ou psicológico
“Estas crianças deviam ser ajudadas e acompanhadas até ficarem bem. Mas não é isso que acontece”, diz, por seu lado, Marília, a mãe de Leonel.
Na grande maioria dos casos, o apoio psicológico, de uma forma frequente e continuada, só está disponível no sector privado com elevados custos associados, impossíveis de assegurar pela maioria das famílias das vítimas, que já antes viviam sem grande hipótese de escolha, diz.


154 familiares e amigos das crianças e dos jovens alvo de abusos foram igualmente apoiados. Os pais podem ser ajudados a lidar com o sentimento de que falharam na protecção dos filhos

Terapia e não medicamentos
“No sistema de saúde não há apoios adequados. Devia haver mais terapia e menos medicamentos. Mandam os miúdos para o [Hospital] Magalhães Lemos e não é adequado.” Este hospital presta cuidados de saúde especializados de psiquiatria e de saúde mental. “Eles não precisam de medicamentos, eles precisam é de terapia regular, um profissional que os ajude a ver uma luz ao fundo do túnel”, continua a mãe de Leonel.

Fala das outras vítimas com a mesma emoção com que fala da vítima que lhe é mais próxima, o seu filho. “É preciso garantir que estas pessoas sejam acompanhadas e ajudadas a voltarem a sentir-se bem”, apela, lembrando especificamente os amigos do filho que também foram alvo de abusos pelo mesmo homem.

“Um deles foi testemunha no julgamento em que Leonel era vítima. Mas bloqueou, não conseguiu falar. Saiu da sala de audiências e agarrou-se a mim a pedir desculpa, e a chorar, por não poder fazer nada para ajudar no caso do Leonel.” E o caso dele? Não avançou. “Nem imagino como estará esse miúdo agora.”
Lara, Leonel, Marília e Júlia são nomes fictícios