28.7.23

A pobreza no tempo do Estado Novo — como os poderes públicos lidavam com esta realidade social

José António Correia Pereirinha, opinião , in Público


Manuela Silva estimava que, em 1973, no último ano do regime, 43% dos portugueses estavam em situação de pobreza relativa. Eram principalmente trabalhadores rurais, operários não agrícolas, idosos.


Na pro memoria escrita a Salazar, em 13 de Julho de 1958, D. António Ferreira Gomes, então bispo do Porto, escrevia a dada altura:


"Todos estamos de acordo em que há dois problemas fundamentais, sem cuja solução não poderá haver paz social, sejam quais forem as aparências. O primeiro é que os frutos do trabalho comum devem ser divididos com equidade e justiça social entre os membros da comunidade, quer no ponto de vista dos indivíduos quer no dos sectores sociais (e aqui podemos pensar especialmente na lavoura e na miséria do trabalhador do campo). O segundo é que, seja qual for o conforto ou riqueza que se atribuam a um indivíduo ou a uma classe, nunca eles estarão satisfeitos enquanto não experimentarem que são colaboradores efectivos, que têm a sua justa quota-parte na condução da vida colectiva, isto é, que são sujeito e não objecto da vida económica, social e política. (…) Não poderei dizer quanto me aflige o já hoje exclusivo privilégio português do mendigo, do pé-descalço, do maltrapilho, do farrapo; nem sequer o nosso triste apanágio das mais altas médias de subalimentados, de crianças enxovalhadas e exangues e de rostos pálidos (da fome e do vício?)."

A este alerta, lúcido e corajoso, para os problemas sociais na época, Salazar responderia, um ano depois, com o exílio forçado de D. António Ferreira Gomes. Mas cálculos feitos, 25 anos depois desta carta, por dois prestigiados investigadores sociais, não deixavam dúvidas: Manuela Silva estimava que, em 1973, no último ano do regime, 43% dos portugueses estavam em situação de pobreza relativa (com rendimento inferior a 75% do rendimento per capita) e Alfredo Bruto da Costa estimava que 41% dos portugueses estariam, nesse ano, em situação de pobreza absoluta (com limiar de pobreza definido por via normativa, a partir da estimativa do custo de uma dieta alimentar adequada, como na altura se costumava fazer). Nessa época, os pobres eram principalmente trabalhadores rurais, operários não agrícolas e a população idosa.

Passados que são 65 anos sobre o envio desta carta, é com natural inquietação que constatamos a ainda pertinente preocupação com esta realidade, sendo evidente a actualidade dos conceitos analíticos que a suportam: a realidade da desigualdade económica e da pobreza monetária e privação material (o primeiro dos problemas enunciados) e a falta de participação social, o segundo destes problemas, que a literatura da política social, e a linguagem do poder político, viriam designar, muitos anos depois, já no final dos anos 1980, como “exclusão social”.
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O modelo corporativo de organização social, iniciado em meados dos anos 1930, não se equipou dos instrumentos e dos recursos que permitissem assegurar a cidadania social, ainda que a Constituição da República Portuguesa de 1933 tenha consagrado, como uma das atribuições do Estado, “zelar pela melhoria das condições das classes sociais mais desfavorecidas, obstando a que aquelas desçam abaixo do mínimo de existência humanamente suficiente” (art. 6.º n.º 3).

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A família (agrupamento natural) era o destinatário da assistência, sendo os apoios sociais atribuídos com base numa avaliação do grau de insuficiência económica da família dos destinatários, feita por visitadoras e informadores especializados. Eram consideradas de socorro urgente “as necessidades de alimentação, vestuário, tratamento, internamento, amparo ou defesa moral, quando se apresentem como extremas ou a sua insatisfação contrarie os naturais sentimentos de caridade e as leis de humanidade”. Eram estas, nessa época, as necessidades humanas prioritárias na aferição das situações de insuficiência económica.

Desta forma, os poderes públicos intervinham para garantir a satisfação das necessidades humanas, embora nos anos 1960 esta política tenha evoluído para formas mais integradas de intervenção, juntamente com a área da saúde, em que “a política de saúde e assistência tem por objectivo o combate à doença e a prevenção e reparação das carências do indivíduo e dos seus agrupamentos naturais”, tendo presente “a natureza unitária da pessoa humana”, atribuindo um papel importante à família “como meio mais adequado à vida e ao desenvolvimento integral do homem”, devendo “conceder-se preferência à acção preventiva”. É uma fase de transformação da natureza assistencial do Estado, que antecipa o que foi a grande mudança de orientação que ocorreu, a seguir ao 25 de Abril de 1974, com a criação do salário mínimo nacional e de medidas orientadas pelo princípio de cidadania social, que eu designo por Regime de Mínimos Sociais, um conjunto de transferências sociais atribuídas como um direito (pensão social, subsídio social de desemprego, rendimento social de inserção, complemento social para idosos, como exemplos), que constitui o sistema de protecção social de cidadania, cujos encargos do Estado representam actualmente cerca de 4% do PIB. A criação do Serviço Nacional de Saúde viria a ser, em 1979, a consagração de um direito universal à saúde.


Foi também em meados dos anos 1960 que foi criado o Serviço de Promoção Social Comunitário que teve um papel muito importante na realização de projectos de desenvolvimento comunitário, o que significou uma mudança de paradigma nas formas de intervenção social, em grande parte alicerçada numa elite de técnicos e dirigentes que na época trabalhavam na assistência social em Portugal.


As necessidades humanas eram conceptualizadas de uma forma mais alargada, incluindo dimensões de natureza relacional e de participação social, em que a avaliação das necessidades humanas era feita tendo em consideração a realidade dos seres humanos no seu ambiente local concreto, e das potencialidades económicas, sociais e humanas que podem operar localmente para promover a satisfação das necessidades humanas. Esta cultura, criada e desenvolvida localmente, permite compreender o sucesso de projectos de desenvolvimento local e de luta local contra a pobreza que tiveram concretização em Portugal nos anos 1980 e 1990.

Portugal, um dos primeiros a ter abono

Outra actuação do Estado Novo, direccionado às necessidades humanas, foi a criação, em 1942, do regime do abono de família, em que Portugal foi país pioneiro (foi o décimo primeiro país a criar este tipo de transferências sociais).


Este regime era “o meio por excelência para a realização do princípio do salário familiar”, isto é, “o mínimo indispensável às necessidades do trabalhador e da sua família”. Ao salário-base de cada trabalhador, pago directamente pela empresa, seria acrescido um complemento salarial, ou abono, em função do número de filhos desse trabalhador.


Sendo uma extensão do sistema previdencial, e entendido como um complemento do salário, não era uma medida assistencial, mas antes um rendimento adicional atribuído com respeito pelo estatuto laboral do beneficiário (só os trabalhadores que recebessem salário o poderiam obter), respeitando as possibilidades económicas da empresa (uma quotização proporcional à massa salarial) e as necessidades da família (pelo número de filhos). Tinha assim uma natureza redistributiva. A despesa social com o abono de família sempre representou, ao longo do período do Estado Novo, um valor muito expressivo, representando entre 21% e 34% da despesa social entre 1948 e 1973.


A pobreza é, actualmente, um problema social reconhecido por todos os actores sociais e políticos e é, também, um objecto de investigação nas ciências sociais, território científico disputado, mas também partilhado, por várias áreas científicas (sociologia, economia, ciência política, história, antropologia).


Mas esta não era a realidade no período do Estado Novo. Alertas para esta realidade eram motivo para erradicação social de quem o denunciasse. As ciências sociais, em Portugal, não a incluíam como objecto de estudo. Isto não significa que a preocupação com a dignidade humana tivesse estado ausente das preocupações políticas nessa época, designadamente nos anos finais desse regime. Era, porém, uma preocupação de natureza assistencialista, que só verdadeiramente se transformou numa questão de cidadania, com o reconhecimento do direito à dignidade humana, como direito social, com as liberdades políticas emergentes com o 25 de Abril de 1974. Só então, verdadeiramente, as ciências sociais despertaram para este problema social.


Abono de família, escolaridade obrigatória e CSI foram as chaves para mitigar a pobreza


“A fome, o desemprego, a falta de carvão, de lenha ou de petróleo, a desvalorização dos salários reais, o aumento dos preços, o prolongamento da jornada de trabalho, os descontos nos salários, etc., vão lavrar o terreno onde eclode a vaga de agitação social de 1942 a 1944”, escreve o historiador Fernando Rosas, num testemunho que, à falta de indicadores oficiais sobre a pobreza, ilustra bem a carestia de vida que tolhia muitos portugueses nos anos da II Guerra Mundial (1939-1945). A gasolina e o petróleo tinham sido os primeiros a ser racionados, seguiram-se-lhe o açúcar, o sabão, o arroz, o bacalhau, o azeite, o óleo.

Ao longo da década de 1950, e com a ajuda do Plano Marshall, Portugal iniciou um processo de transferência de mão-de-obra da agricultura para a indústria, construção civil e serviços. Mas, apesar dos esforços do regime em dar de si uma imagem de prosperidade, há formas de colmatar a ausência de estatísticas oficiais sobre a pobreza dessa altura. Por via da emigração, por exemplo. Entre 1926 e 1958, mais de 650 mil portugueses deixaram o país, que assim foi escoando a pobreza a um ritmo médio de 20 mil saídas por ano.

E a pobreza mede-se também a partir de preocupações como as expressas na campanha lançada pelo Notícias Ilustrado, em Julho de 1958, e que visava sensibilizar a opinião pública para a falta de assistência e apoio às crianças. “3000 crianças em idade escolar exercem em Lisboa profissões de adultos. Um problema!”, lia-se no respectivo cartaz.

No final dos anos 1960, Portugal tem “a taxa de mortalidade infantil mais elevada entre os países europeus”. Morria-se de doenças infecciosas e parasitárias e de insalubridade. De pobreza, enfim.

A entrada na década de 1970 trouxe o salário mínimo nacional de 3300 escudos e um aumento “sem precedentes” do rendimento das classes assalariadas (os salários reais cresceram 12% e 9% em 1974 e 1975). O aumento do poder de compra foi, porém, acompanhado de uma inflação que saltou para os 20%.

Descontadas as conjunturas de cada década, os menores de 18 anos apresentaram-se logo a partir do momento em que começou a ser feita a contabilização oficial da pobreza como um dos grupos mais fustigados pela pobreza. E continuam a sê-lo, apesar de todos os esforços que vêm sendo feitos, por via de medidas como a universalização do abono de família, o alargamento da escolaridade obrigatória e, mais recentemente, da progressiva gratuitidade das creches. Em 2021, segundo o INE, 18,5% dos jovens estavam em risco de pobreza. Em 2003, a pobreza ameaçava 24,6% das crianças e jovens. Entre os idosos, chegava em 2021 a 17%, substancialmente abaixo dos 28,9% de 2003.

Na melhoria destes indicadores pesaram medidas como a criação, em 2005, do Complemento Solidário para Idosos (CSI) destinado aos pensionistas com muito baixos recursos. O país soma hoje 151.384 beneficiários do CSI, segundo as estatísticas mais recentes da Segurança Social.

Em 2021, o valor que define o limiar de pobreza alterou-se para os 6608 euros líquidos por ano. O ganho médio mensal era 1289,5 euros. Actualmente, a taxa de risco de pobreza reduziu-se para os 16,4% em termos globais. Mas, se ao risco de pobreza somarmos o de exclusão social, o INE contava em 2022, com base nos rendimentos do ano anterior, mais de dois milhões de portugueses ameaçados pela pobreza e pela exclusão.

Entre as famílias monoparentais com pelo menos uma criança, a pobreza escala para os 30%. Na Estratégia Nacional de Luta Contra a Pobreza, que o Governo publicou em Dezembro de 2021, o objectivo enunciado é retirar 600 mil portugueses da pobreza até 2030, das quais 170 mil crianças e 230 mil trabalhadores. É que uma das idiossincrasias observáveis na sociedade portuguesa assenta precisamente na elevada proporção de trabalhadores pobres. Em 2021, 10,3% dos trabalhadores com contrato efectivo e salário certo ao fim do mês eram pobres. Entre os desempregados, 43,4% são-no também, bem como 14,9% dos reformados. Natália Faria

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