Duas décadas depois de começar a trabalhar, Ivette Gonzalez decidiu mudar “drasticamente” de área. Hoje continua a fazer trabalho humanitário, mas é também consultora e técnica de fatos espaciais. Em entrevista ao Expresso deixa dicas sobre mudar de vida e seguir carreiras científicas
Tinha o sonho de ser astronauta e ir ao espaço, mas não queria ser militar. Em vez disso, tornou-se trabalhadora humanitária.
Durante 20 anos, Ivette Gonzalez viajou pelo mundo, de país em país. Trabalhou em locais afetados por surtos de doenças, desastres naturais e guerras. O objetivo: ajudar a reconstruir vidas.
“Muitas pessoas pensam que é o melhor trabalho do mundo, mas apercebi-me que para mim ainda havia mais para fazer. Um trabalhador humanitário é alguém que faz um trabalho incrível em zonas desoladoras. Mas há sempre algo que podemos fazer a um nível mais macro”, comenta em entrevista ao Expresso durante uma passagem pelos Açores para a Glex Summit [cimeira que reuniu dezenas de cientistas e exploradores na ilha Terceira em junho].
Por isso, decidiu mudar de vida. Como? “É interessante, porque essa é a pergunta que mais me fazem. Acho que isso diz alguma coisa sobre a nossa condição enquanto humanos.”
“ÉS FELIZ? SENTES QUE TENS UM PROPÓSITO? O TEU TRABALHO É RELEVANTE PARA O MUNDO?”
Tomada a decisão, Ivette Gonzalez lançou-se numa longa pesquisa.
“Comecei a procurar o que mais podia fazer com as minhas competências”, recorda. Durante seis meses, entrevistou amigos, familiares e estranhos que encontrou no LinkedIn com títulos profissionais que achou interessantes.
“Começaram a falar-me das profissões deles, do trabalho, das suas experiências. Fazia as mesmas perguntas a todos. És feliz? Sentes que tens um propósito e que o que fazer importa? O teu trabalho é relevante para o mundo?”
O resultado surpreendeu-a. “Fiquei chocada que no fim foram os meus amigos que trabalhavam [na área ligada ao] espaço que me entusiasmaram mais. Eles convenceram-me que existem muitas oportunidades com toda esta experiência em resiliência humana no setor espacial. E por isso decidi tentar.”
Era 2018, ainda antes dos primeiros voos comerciais ao espaço. Durante o primeiro ano participou em 13 conferências do setor para “conhecer toda a gente” e “perceber em que estavam a trabalhar”.
“VIVEMOS NUM TEMPO EM QUE NÃO TEMOS DE ESCOLHER UM TÍTULO PROFISSIONAL EM EXCLUSIVO”
O riso de Ivette Gonzalez quando lhe perguntamos qual é o seu título profissional atual é contagiante. A verdade é que a sua atividade não cabe numa caixinha só.
“Antes e mais que tudo, continuo a ser uma trabalhadora humanitária. Ainda vou ajudar nas áreas em que me pedem ajuda e contribuo o que posso com o meu conhecimento”, começa por descrever.
Depois “sou uma técnica de fatos especiais, o que é muito entusiasmante porque ajudo estudantes e pessoas que se estão mesmo a preparar para ir ao espaço como vestir, mexer e trabalhar dentro do fato espacial.”
No fundo, o seu trabalho prende-se com a componente humana destas ferramentas tecnológicas, o que implica testar os fatos em vários ambientes (como em voos parabólicos, debaixo de água e nos diferentes campos de treino Apollo). “Testamos quão bem trabalham e quão bem as pessoas trabalham com eles", explica.
Surpreendentemente, as duas atividades acabam por estar bastante interligadas. Se o conhecimento sobre resiliência humana lhe permite perceber melhor o comportamento humano nos testes aos fatos espaciais, também descobriu que as tecnologias do espaço podem fazer uma diferença tremenda no trabalho humanitário.
Em 2019, Ivette Gonzalez fez parte da equipa de emergência mobilizada quando o furacão Dorian devastou as Bahamas. Através da ativação da Carta Internacional Espaço e Grandes Desastres, autoridades e trabalhadores humanitários conseguiram ter acesso gratuito a informações de satélite vitais às operações de resgate.
“Quanto trabalhava na ajuda humanitária, não sabia quão acessível a informação era. Em 2019, foi a primeira vez que usei dados do espaço. A ilha tinha encolhido porque estava inundada. Depois do furacão, não conseguíamos localizar as casas, as pessoas, as terras ou estradas. Os barcos das missões de busca e resgate estavam constantemente a colidir e a ficar encalhados porque não conseguíamos ver os destroços por baixo. Por isso, naquela primeira semana ajudou imensamente termos os dados de satélite para navegar. Encontrámos pessoas que tinham ficado encurraladas em pequenas partes da ilha, conseguimos.”
Os mesmos dados têm sido úteis, nos últimos anos, para redesenhar a linha costeira onde esta costumava estar e reconstruir os corais e manguezais que ficaram destruídos.
A estes dois trabalhos, Ivette Gonzalez ainda soma um terceiro, como consultora. “E este é importante porque todos precisamos de pagar as contas. Aconselho agências espaciais e grupos tecnológicos emergentes para os ajudar a desenvolver uma economia relevante, viável e até crescente em torno da indústria espacial.”
“Uma coisa que acho que é importante, especialmente para esta geração, é que vivemos num tempo em que não temos de escolher um único título profissional ou fazer apenas uma coisa bem. Podemos ter multitudes e isso significa que existem muitas camadas naquilo que nos apaixona e pelo qual nos interessamos. E podemos fazer todas”, defende.
“VIVEMOS NUM TEMPO EM QUE É ACEITÁVEL MUDAR DE EMPREGO”
Especificamente no caso das das carreiras científicas, argumenta, “há espaço para todas as paixões”. “No caminho para as STEM [abreviatura inglesa para "ciência, tecnologia, engenharia e matemática”] - quer seja pelo espaço, oceanos, Terra, clima, atmosfera - pode-se perseguir o que quer que nos entusiasme. Desde que sejas feliz e saibas que podes ser relevante.”
“A parte de ser relevante é que é mesmo crítica”, acrescenta. “Tornarmo-nos indispensáveis a algo maior” é o que permite assegurar o emprego a longo prazo.
Para quem procura uma mudança, Ivette Gonzalez também deixa um conselho. “Vivemos num tempo em que é aceitável mudar de emprego. É aceitável desenvolver competências em diferentes disciplinas. Por isso, não tenhas medo de fazer a mudança.”
“Começa por procurar um novo emprego que queiras ou algo que te entusiasme. É possível fazer duas coisas ao mesmo tempo durante muito tempo, para fazer uma transição mais suave.”
Ivette Gonzalez também recomenda o método de fazer entrevistas aos profissionais que já estão no cargo ambicionado. “As pessoas estavam muito felizes por falar e partilhar o seu trabalho. No fim tornaram-se bons amigos e colegas, porque ficaram surpreendidos por saber que alguém queria fazer a mesma coisa e partilhava a sua paixão por algo.”
Para a humanitária e técnica, importa também “construir comunidade”. Isto é, “encontrar as pessoas com quem gostaria de aprender e trabalhar, porque isso é muito raro.”
“POR CADA MULHER QUE TEVE ACESSO A EDUCAÇÃO COMO EU, HÁ DEZ QUE NÃO TIVERAM”
Com o trabalho que realiza, Ivette Gonzalez é considerada uma ativista pela diversidade e inclusividade das comunidades marginalizadas na exploração espacial e nas STEM. Entre outros projetos, lidera um projeto de mentoria que faz a ponte entre várias mulheres da indústria espacial comercial e raparigas adolescentes para as incentivar a seguirem carreiras científicas.
“Uma coisa que notei é que quando as coisas evoluem rapidamente [como tem acontecido com o setor espacial], é difícil respirar, dar um passo atrás e perceber o que está a cair no esquecimento. Sendo de origem mexicana e nativa americana, cresci na pobreza, na fronteira numa época em que havia gangues. Vivi dentro desta estrutura comunitária e sei que as pessoas podem ser esquecidas. E eu quero garantir que ninguém é esquecido.”