Sónia Trigueirão, in Público
Há funcionários de misericórdias que ainda não receberam o subsídio de Natal de 2022 e o subsídio de férias de 2023. Há salas do pré-escolar que fecharam as portas e não voltam a abrir em Setembro.
Várias são as misericórdias que actualmente se debatem com problemas graves de sustentabilidade, ao ponto de terem de vender património, recorrer à banca e fechar valências para conseguirem pagar as despesas, nomeadamente salários, e manterem a ajuda que prestam diariamente a milhares de pessoas em todo o país.
Este Verão, houve funcionários que apenas receberam metade do subsídio de férias, ou não receberam nada, e crianças que se despediram dos amigos porque as salas do pré-escolar que frequentavam não voltam a abrir em Setembro.
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“Muitas pessoas pensam que as misericórdias são ricas, mas a verdade é que apenas são ricas em misericórdia para ajudar crianças, idosos ou os mais necessitados.” A afirmação é de João França, provedor da Santa Casa da Misericórdia da Lousã, no distrito de Coimbra, que, do alto dos seus 81 anos, explica as dificuldades diárias que enfrenta para manter a resposta social que dá à comunidade.
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O valor pago pelo Estado nos acordos de cooperação também não ajuda. “Fica muito aquém dos custos reais. Não chega a 30 % do que gastamos com os utentes ou com as crianças”, sustenta João França, que diz que não tem outro remédio senão vender património. “Vou vender o edifício do Hospital de São João, que está fechado há anos. Já tentei arrendar a grupos privados de saúde, mas ninguém mostrou interesse...”
Recorrer ao Fundo de Socorro Social da Segurança Social é também outra solução, mas esta ajuda nem sempre é garantida. “A burocracia é tanta!.... Já uma vez fizemos uma candidatura e acabámos por desistir. Também estamos à espera do dinheiro de uma candidatura ao PRR, mas a Segurança Social diz-me que não tem dotação para pagar”, desabafa, acrescentando que também vai acabar com o pré-escolar.
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Aumentar mensalidades?
No Alentejo, nomeadamente no distrito de Beja, a situação também não é das melhores. O presidente do Secretariado Regional das Misericórdias de Beja, Francisco Ganhão, explica como esta é “uma equação que não é fácil de resolver”. “Procuramos manter o apoio social aos mais necessitados, ter equipas motivadas e, ao mesmo tempo, fazer face ao aumento dos custos do que faz funcionar os nossos equipamentos”, afirma.
Os provedores reconheceram que os funcionários das misericórdias devem ter melhor remuneração. “Para isso é necessário que o Estado, através dos acordos de cooperação, faça a transferência de valores condignos para que possamos ter uma tabela salarial mais aliciante para os nossos colaboradores”, sustentou. “Por exemplo, a comparticipação do Estado para um utente de um lar anda nos 490 euros, mas, na minha misericórdia, os custos com esse utente ultrapassam os 1300 euros”, exemplifica, sublinhando que a “comparticipação do Estado devia aproximar-se, no mínimo, dos 50%”.
Francisco Ganhão também é provedor da Santa Casa da Misericórdia de Odemira, onde chegou a pensar fechar a valência de longa duração porque teve um prejuízo de 500 mil euros. “Só não fechei porque houve um reforço extraordinário do Estado para as unidades da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados com retroactivos a Janeiro de 2022”, afirma, acrescentando que neste momento o subfinanciamento do pré-escolar é que está a dar problemas e que há muitas misericórdias no distrito de Beja que estão a pensar fechar essa valência. “É o caso da Vidigueira, por exemplo”, indica.
O provedor da Santa Casa da Misericórdia de Aljustrel, Manuel Frederico, também enfrenta problemas semelhantes. “Sou provedor há 22 anos e sempre tive saldo positivo. Neste momento já vou com 110 mil euros negativos”, conta. Manuel Frederico explica que para poder pagar os subsídios de férias aos funcionários em Junho, não pagou aos fornecedores em Maio. “Tenho colegas provedores que dizem que temos de aumentar as mensalidades. Mas como posso eu fazer isso às famílias e a estes idosos? Estes idosos são os meninos que há 80 anos andavam descalços e que tinham de trabalhar. Nem crianças puderam ser...”, disse, com a voz embargada
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“Temos uma casa de acolhimento residencial para crianças dos zero aos seis anos. Muitos são bebezinhos cujo leite é comprado na farmácia e custa um dinheirão. Este ano, só nesta resposta, temos já quase 80 mil euros negativos”, afirma, para sublinhar ainda a grande carência de recursos humanos. “Não temos condições financeiras para pagar melhor e as pessoas fogem para outros serviços”, sustentou.
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Segundo Armindo Vicente, já não chega só o enfermeiro, o animador cultural e a assistente social. “É preciso um psicólogo e terapeuta ocupacional. O Estado não dá dinheiro para estes profissionais porque não estão incluídos no acordo de cooperação e é a Misericórdia que tem de pagar”, sublinha, acrescentando o seguinte: “As nossas reivindicações não têm o objectivo de conseguir mais dinheiro para ter lucro. Quando dá lucro, somos obrigados a indicar onde vamos investir no exercício seguinte. O que queremos é ter mais dinheiro para poder prestar um serviço digno e com qualidade à sociedade.”
União diz que está a negociar actualização das comparticipações
Ao PÚBLICO, a União das Misericórdias Portuguesas (UMP), que vai ter eleições em Dezembro e cuja actual direcção enfrenta uma contestação interna, ao ponto de pela primeira vez, em 16 anos, Manuel Lemos ter uma lista opositora, diz que abordou a “problemática da sustentabilidade das Misericórdias no arranque das negociações com o Governo, reforçando a importância de ser feita uma actualização da comparticipação pública ajustada à actual realidade”.
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Segundo António Sérgio Martins, o Fundo de Socorro Social é uma ilusão. “Há misericórdias que há mais de três anos solicitaram esse apoio e nunca foi concretizado. A Santa Casa de Constância é disso exemplo”, refere. Para António Sérgio Martins, “é urgente recentrar o papel da UMP para que se foque exclusivamente na representação das suas associadas” porque “a situação só não é mais grave graças à entrega de verdadeiros heróis que diariamente estão no terreno, sejam eles provedores ou colaboradores desta rede única e distintiva”, afirmou.
O Somos Todos Misericórdia reúne cerca de 40 misericórdias, de norte a sul do país, que contestam a actual direcção da União das Misericórdias, que acusam de estar demasiado politizada e sem defender os interesses do sector.
Os gastos da UMP também têm sido alvo de escrutínio por este movimento que, na última assembleia geral, confrontou o actual presidente da UMP, Manuel Lemos, acerca da aquisição de uma viatura da marca Mercedes-Benz S400 para se deslocar em serviço e que custou cerca de 116 mil euros. Manuel Lemos terá recusado responder. Segundo o movimento, também ainda não foi apresentada justificação para 213 mil euros que constam como gastos numa rubrica no relatório de contas de 2022, denominada “subcontratos”.
Motivo de crítica também foi o facto de a UMP ter organizado um cruzeiro ao Norte da Europa, com visitas a Copenhaga e Estocolmo, entre 30 de Junho a 11 de Julho, cujo preço mínimo por pessoa foi de 3775 euros, quando há misericórdias que se debatem com graves problemas financeiros e “a UMP devia era canalizar esforços para as ajudar”.
Em todo o território português existem actualmente 388 misericórdias, algumas com mais de 500 anos de existência. Apoiando diariamente mais de 165 mil pessoas em todo o país em áreas sociais estratégicas, como a educação, saúde, inclusão socioprofissional, as misericórdias detêm 23 hospitais e 117 unidades de cuidados continuados.