Zeca Afonso teria de “montar uma tenda para dormir” em Grândola
Megaempreendimentos como o Costa Terra alimentam a especulação imobiliária
A Pensão Fim do Mundo, onde Zeca Afonso ficou quando há 59 anos compôs a letra da canção que homenageia a “terra da fraternidade”, já não é mais uma pensão. Tal como a Residencial Vila Morena já não é uma residencial e o Hotel Dom Jorge de Lencastre já não é um hotel. Estes três estabelecimentos foram transformados em alojamentos que servem de dormitório de funcionários e trabalhadores contratados pelos megaempreendimentos turísticos de luxo em construção ou já em funcionamento no concelho.
“Não se encontra na vila de Grândola um único hotel ou pensão onde se possa pernoitar por preços acessíveis uma ou duas noites”, garante Luís Vital Alexandre, presidente da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense. E usa a ironia para dizer que se Zeca Afonso estivesse vivo e quisesse revisitar a associação, “teria de montar uma tenda de campismo para aqui dormir”. A única coisa que “ainda vai havendo”, acrescenta, “é a fraternidade que inspirou o poema”.
Ao lado da associação que alberga a orquestra filarmónica está o edifício do que era o único hotel da vila, pintado de branco e azul e com uma câmara à entrada. Comprado pela Quinta da Comporta, passou a dormitório de funcionários do Wellness Boutique Resort, que funciona no Carvalhal. A empresa confirma: “Cerca de 70% da equipa está no [antigo] Hotel Dom Jorge e a restante em apartamentos próprios ou da empresa na área.”
Quem esteja de passagem por Grândola não consegue alugar um quarto “nem num raio de um quilómetro do centro”, garante o também vereador socialista sem pelouro na Câmara de Grândola, de maioria comunista. Para alojar o maestro, que ali vai duas vezes por semana (e vive a 130 km de distância), tiveram que “improvisar um quarto” numa das salas de ensaio, onde meteram uma cama. “Sendo uma associação sem fins lucrativos, era impossível colocar o maestro num Alojamento Local a mais de €100 a noite”, diz Luís Alexandre, lamentando “a situação gritante em que o concelho se encontra ao nível dos preços do alojamento temporário e da habitação”.“As ações da câmara levaram à ultrapassagem do limite máximo de camas turísticas”, diz a Proteger Grândola
Na vila ninguém arrenda um T2 por menos de €800 nem compra um por menos de €200 mil, diz quem ali vive, atribuindo a culpa à especulação imobiliária associada ao turismo de luxo de uma dezena de empreendimentos, aos quais se juntam milhares de camas turísticas previstas em “pedidos de informação prévia” aprovados pela Câmara de Grândola. Se todas forem concretizadas, “o concelho ultrapassa as 30 mil, mais do dobro do legalmente estabelecido no Plano Regional de Ordenamento do Território do Alentejo em vigor, que estabelece um limite de uma cama turística por cada habitante”, recorda Guy Villax, presidente da associação Proteger Grândola. O concelho tem 13.822 habitantes (perdeu 7% numa década) e o PDM, suspenso há mais de um ano, autoriza 14.915 camas turísticas. “As ações ou inações do executivo camarário levaram à ultrapassagem do limite máximo, o que terá graves impactos urbanísticos e levanta enormes preocupações ambientais e sociais junto da população local”, reforça Villax.
O problema, alerta Luís Alexandre, “é que todo este investimento não traz o retorno que desejaríamos”. O concelho de Grândola é um dos que mais perdeu população no país e um dos que mais cresceu em termos de receitas de imposto municipal sobre transmissões de imóveis (IMT) (mais 708%), segundo o “Anuário Financeiro dos Municípios”.
OS RISCOS DO ENCLAVE
Numa frente de 45 km de costa, entre Troia e Melides, os investimentos turístico-imobiliários somam mais de €1,5 mil milhões. “Grândola é uma vila pequena e com história e não estava preparada para este boom”, admite Ricardo Ribeiro, que viu a oportunidade de há um ano abrir um pequeno Alojamento Local no centro da vila, onde 80% dos clientes são turistas estrangeiros e uma noite ronda os €100. “O maior problema são os desequilíbrios que estes grandes investimentos no turismo geram e a inflação que criam. Apesar de a taxa de desemprego ser baixa no concelho, não é aqui que contratam mão de obra qualificada para trabalhar nos empreendimentos e os locais enfrentam a inflação nos preços das casas, nos restaurantes e nos bens em geral. É um desenvolvimento que não é sustentado.”
Para o geógrafo João Ferrão, há um “sobreaquecimento do mercado imobiliário totalmente desproporcional em relação ao poder de compra da esmagadora maioria da população local”. O investigador aponta para os riscos desta “lógica de enclave” dos empreendimentos de luxo e da potencial “contaminação ao nível de salários, preços de produtos básicos de consumo, mercado fundiário e imobiliário, que prejudicará uma parte significativa das comunidades locais a curto ou médio prazo”.
O retorno deste turismo é coisa que não chega à retrosaria de Vitorino Pereira. “O turismo aqui é só para passear e comer, e há quem lucre com uns quartos”, diz o comerciante, de 82 anos, que aqui continua atrás do balcão a vender linhas e tecidos. Hoje não faz mais de €30 em vendas por dia. “A 4 de janeiro de 1983 fiz mais de 91 contos”, conta, enquanto lê as anotações escritas nos livrinhos de capa preta dura que guarda num montinho, atado por um cordel, e que remontam a 1914, quando a loja abriu.
O preço médio de um quarto duplo nos alojamentos/hotéis rurais do concelho ronda mais de €150 por noite, sendo que em espaços como a Quinta da Comporta ou o Sublime Comporta custa mais de €700 ou pode mesmo chegar a €1650, com direito a pequeno-almoço, spa e outras regalias.
Nas antigas Pensões Pereira e Paraíso, ao pé do posto de gasolina da vila, os preços são bem mais modestos, mas estão ocupadas cinco dias por semana, este ano e nos próximos, por trabalhadores das empresas de construção, climatização ou jardinagem, contratadas pelos grandes empreendimentos costeiros. No final do dia é vê-los chegar exaustos após a longa jornada sob o calor. Param no café-restaurante em baixo do alojamento para beber uma cerveja e comer qualquer coisa antes de dormir. Não querem falar para não terem problemas com o patrão. No fim de semana regressam a casa, longe dali, nas áreas de Lisboa, Coimbra ou Porto.
TURISMO E DESENVOLVIMENTO
Questionado sobre a existência de alojamentos acessíveis a turistas e que benefícios tem o município com o desenvolvimento dos grandes resorts, uma vez que a mão de obra vem sobretudo de fora e a especulação imobiliária afeta a população local, o município, presidido pelo comunista António Figueira Mendes, apenas responde por escrito que “o turismo já é uma das grandes alavancas do desenvolvimento de Grândola” e que “estão centrados em promover a habitação acessível no concelho para os munícipes”, disponibilizando “lotes municipais para autoconstrução, terrenos para construção cooperativa a custos controlados e habitação municipal para arrendamento acessível”.
A 27 km da vila de Grândola fica o empreendimento Costa Terra Golf and Ocean Club, onde uma residência custa mais de €4 milhões, ou pelo menos esse terá sido o preço a que foram vendidas 71 das 300 moradias que ali tencionam construir, de acordo com declarações do diretor de vendas da Discovery Land Company, Adrian Wadey, ao “The New York Times”, em 2021. Um valor bem acima dos €1,8 milhões pelos quais foi vendida há meses uma casa com frente de mar no bairro erguido na década de 90 do século XX ao lado do antigo Parque de Campismo da Galé.
Visitar o empreendimento Costa Terra, cuja construção “teve início em setembro do ano passado e terá diferentes fases de desenvolvimento no decorrer dos próximos anos”, está vedado a jornalistas, “por questões de segurança”, diz fonte oficial da Discovery Land ao Expresso. Questionado pelo Expresso relativamente ao alojamento dos seus trabalhadores, o Costa Terra responde que “a grande maioria reside nas suas habitações próprias, situadas em localidades próximas, cerca de 15 em apartamentos com contratos de arrendamento anuais e só um num Alojamento Local”.
Na estrada pública que atravessa a propriedade até à Praia da Galé não faltam seguranças privados a vigiar cada paragem que fazemos. Do outro lado da propriedade, na estrada que liga à Praia da Aberta Nova — onde há “cabanas” com meia dúzia de espreguiçadeiras no areal a €350 ao dia —, encontramos Custódio Pereira Chainho, o antigo caseiro da Herdade da Costa Terra. Só vai à praia à noite, para pescar à cana, e nem sabe o preço das espreguiçadeiras. Aos quase 85 anos de idade, Custódio vai cuidando da horta e do campo de milho que tem ao pé da casa, à beira da estrada, onde vive há 50 anos. É dono de 10 hectares de “terra muito cobiçada” e já várias pessoas lhe bateram à porta para lhos comprar. Nem pergunta quanto oferecem. “Não quero saber. Daqui só saio quando for para uma morada fixa… para a eternidade”, diz com uma gargalhada.