TEXTO MARTA GONÇALVES FOTOS NUNO BOTELHO, in Expresso
A casa de Vanessa está cheia de coisas e coisinhas que em tempos encheram um T2 completamente banal. Desempacotaram tudo o que tinham há ano e meio e encaixaram-se numa casa demasiado pequena, com três pequenas divisões: uma cozinha-entrada, uma sala-quarto e um quarto que é uma sala de jantar. Não há casa de banho, apenas uma sanita atrás de uma porta, num cubículo mais pequeno do que um armário; os duches tomam-se na rua durante o verão e no meio da cozinha no inverno. “Tenho esta piscina aqui”, conta a mulher de 32 anos, enquanto abre a cortina que esconde a chaminé e tira um pequeno insuflável colorido, daqueles em que bebés de fralda chapinham na praia com água do mar. Aqui serve de banheira no meio de uma cozinha.
Vanessa vive com o marido Fernando e a filha Gabriela, de nove anos, no Bairro da Liberdade. Foi ali que, quando os valores das rendas dispararam, encontraram onde morar por €120, numa casa “sem condições de habitabilidade”, mas que pelo menos não era uma tenda. “Era isto ou a rua, era pagar uma renda de €600 ou comer.” Enfiaram toda a vida ali, encafuada numa casa sem portas e só com uma janela. “Ter uma sanita neste bairro é um luxo. Há aqui quem não tenha e use a fossa comum.” As pessoas usam um balde, vão à rua e atiram os dejetos para um buraco. “Não deviam ficar contentes com a vinda do Papa cá, mas tristes. Se vem, não é por este ser o bairro mais bonito.”
Do Bairro da Liberdade veem-se as torres das Amoreiras. Fica a três ou quatro quilómetros do Parque Eduardo VII, onde um palco foi erguido para receber a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), e a outros tantos de Campo de Ourique, uma das zonas mais caras da capital. É atravessado pelo Aqueduto das Águas Livres, monumento nacional visitado por centenas de pessoas — os seus pilares estão a pouco mais de 50 metros das casas daquilo a que chamam “a favela de Lisboa”.
Os caminhos são tão estreitos que provocam uma sensação de aperto, sufoco. Apesar de colados a um dos eixos com mais trânsito de Lisboa, o som da cidade desaparece pelas ruelas e é impossível passar mais que uma pessoa ao mesmo tempo pelo corredor. As construções são precárias, cheias de acrescentos e obras feitas sem autorização, janelas remendadas com panos e plásticos, portas de madeira e partidas. Aos telhados faltam telhas. Quem caminha na São Jacob nem percebe as portas e caminhos labirínticos que existem para lá desta rua principal.
Tal como as fossas comuns — tapadas com placas de madeira para impedir que ratos subam para as ruas e casas —, também existem pelo bairro chafarizes que ainda funcionam. Nem todos têm acesso à água, menos ainda têm saneamento básico. “Não é só pela Igreja que o Papa vem cá, vem cá porque somos miseráveis.” Paulo é um dos filhos do bairro que, já adulto, saiu da Liberdade para criar os filhos numa casa com melhores condições.
A visita de Francisco ao Centro Paroquial de São Vicente de Paulo, que fica às portas do Bairro da Liberdade, está marcada para sexta-feira (4) e com um plano diferente daquele que o padre Crespo tinha idealizado. “Queria ter muita gente do bairro, praticante ou não, mas a polícia e a segurança do Vaticano só vão deixar entrar quem estiver credenciado. Vai ser tudo controlado, temos as ruas cheias de polícia e fechadas”, diz o pároco. “Há aqui tanta gente que gostaria de vê-lo e saudá-lo.”
“QUE DIGNIDADE É ESTA?”
Faltam ainda 14 dias para que Luís Alves, 55 anos, possa ir buscar o cabaz alimentar ao centro paroquial. Na parede, entalado numa moldura, está um retângulo de papel impresso a computador. Parece uma senha de racionamento. Tem dia e hora marcados, garantia de que vai ter comida na despensa. A fachada do sítio onde mora parece ser apenas uma casa degradada, mas para lá da porta junto ao alcatrão há um pátio com várias pequenas casas. A de Luís é no primeiro andar: tem uma cozinha, que é também a entrada, e um quarto-sala onde cabe apenas uma cama de solteiro, um armário e uma secretária. “Que dignidade é esta?”
A casa de banho fica no rés do chão, José mal cabe lá dentro e partilha-a com mais “três ou quatro pessoas”. Há 20 anos que um acidente grave de moto o deixou vários meses em coma e incapaz de trabalhar. Conta que vendeu droga para não ter de ir roubar, foi preso e saiu em condicional. Pediu ajuda na Junta de Freguesia de Campolide, à qual pertence o bairro. “Tudo o que se vê aqui em redor é uma vergonha. Eles não fazem nada, querem é o cu deles e para os amigos.” O tom de voz de Luís eleva-se com a revolta. “O Papa vem cá, os senhores ministros vêm cá, vem cá toda a gente, mas só meteram cá merda e remendos”, diz, desculpando-se a cada instante pelo palavreado. Queixa-se de como o Liberdade foi esquecido enquanto outros bairros desapareceram para dar lugar a novas casas camarárias. “Se não sabem o que se passa aqui foi porque não quiseram saber. Agora querem porque vem o Papa. Daqui a pouco, quando tudo isto passar, já se esqueceram de mim.”
O bairro nasceu como dormitório de centenas de pessoas que vieram dos meios rurais à procura de trabalho em Lisboa nos primeiros anos do século passado. Criaram-se filhos, nasceram netos e, em alguns casos, já chegaram os bisnetos e a requalificação do Liberdade não aconteceu. “Não estavam à espera disto em 2023, pois não?”, pergunta Paulo.