Ana Henriques, in Público
Juízes do Constitucional consideram prerrogativa legal da Segurança Social “uma violenta ingerência na independência dos tribunais” .No primeiro ano que José Guilherme recebeu a carta da Segurança Social a isentá-lo de contribuições estranhou: “Sempre tinha pago e nada mudara” que justificasse tamanha magnanimidade por parte do Estado. Depois, durante os três anos seguintes, acostumou-se, conta o empresário individual do ramo imobiliário.
Mas tudo o que é bom acaba e o seu caso não foi excepção: o Estado acabou por lhe pedir de volta os perto de 1500 euros de que o havia isentado ao longo de quatro anos.
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“Um particular residente em Lisboa, a propósito de uma dívida contributiva associada à sua actividade profissional de 1488 euros, vê a competência para o julgamento deslocada para o Tribunal de Mirandela, a cerca de 460 kms [quilómetros] da sua residência e a mais de cinco horas de viagem, por força de deliberação do órgão directivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social”, criticam os conselheiros. “José Guilherme Nunes vê-se obrigado a gerir o litígio a grande distância, incorrendo nos custos inerentes, designadamente com deslocações do advogado, e suportando todo o leque de inconvenientes e dificuldades acrescidas que a circunstância acarreta”, observam, considerando o sucedido “um ataque directo ao património” do putativo devedor.
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[Prática da Segurança Social representa] violenta ingerência na independência externa dos tribunais, claramente incompatível com a ConstituiçãoAcórdão do Tribunal Constitucional
Não é fácil apurar por que razão alguns destes litígios estão a ser dirimidos em tribunais a centenas de quilómetros da área de residência dos contribuintes, porque a tutela se recusa a dar qualquer tipo de explicação, apesar de ter sido questionada pelo PÚBLICO mais do que uma vez.
Mas as hipóteses avançadas pelo Tribunal Constitucional são pouco abonatórias para o ministério liderado por Ana Mendes Godinho. Dizem os juízes que ao ter nas mãos o poder de concentrar os processos nos tribunais administrativos e fiscais de primeira instância que se têm mostrado mais favoráveis às suas pretensões de cobrança, descartando aqueles “mais renitentes em adoptar leituras pro fisco”, é bem possível que o Instituto de Gestão Financeira “insufle de forma importante o sucesso global do seu contencioso, (…) com flagrante sacrifício da igualdade processual entre litigantes”.
Além do processo do marido, Luísa Bento tem em mãos o de um cliente que, morando na zona de Sintra, foi parar ao tribunal de Castelo Branco. A advogada não crê que seja para ganhar as causas contra os executados que a Segurança Social os acciona judicialmente em tribunais longínquos.
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"Subordinação do poder judicial à autoridade administrativa"
Um acórdão datado do final de Maio e subscrito por 12 dos 13 conselheiros do Palácio Ratton diz que esta prática representa “uma subordinação do poder judicial à autoridade administrativa e, como tal, uma violenta ingerência na independência externa dos tribunais, claramente incompatível com a Constituição”.
Isto porque um dos princípios que garante independência dos tribunais se relaciona com a aleatoriedade na distribuição dos processos. Ao estar legitimado por lei a escolher determinado tribunal para dirimir estas questões, fugindo assim às regras de competência geográfica vigentes no sistema de justiça, existe o risco de o Estado “produzir um efeito de asfixia no exercício independente da missão do poder judicial”.
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Só em 2023, o Constitucional pronunciou-se sempre neste sentido mais de dezena e meia de vezes. Bastariam três para que os representantes do Ministério Público no Palácio Ratton pudessem suscitar a declaração de inconstitucionalidade destas normas de forma definitiva.
Coincidência ou não, só um dia depois de o PÚBLICO enviar perguntas nesse sentido quer para este tribunal, quer para a Procuradoria-Geral da República esses representantes desencadearam o processo destinado a abolir de uma vez por todas regras que a esmagadora maioria dos conselheiros consideram violarem a lei fundamental e os direitos dos contribuintes executados. O destino certo deste processo é mesmo esse: a Segurança Social vai ficar impedida de escolher tribunais para reclamar dívidas.