24.7.23

Segurança Social vai ficar impedida de escolher tribunais para reclamar dívidas

Ana Henriques,  in Público

Juízes do Constitucional consideram prerrogativa legal da Segurança Social “uma violenta ingerência na independência dos tribunais” .

No primeiro ano que José Guilherme recebeu a carta da Segurança Social a isentá-lo de contribuições estranhou: “Sempre tinha pago e nada mudara” que justificasse tamanha magnanimidade por parte do Estado. Depois, durante os três anos seguintes, acostumou-se, conta o empresário individual do ramo imobiliário.

Mas tudo o que é bom acaba e o seu caso não foi excepção: o Estado acabou por lhe pedir de volta os perto de 1500 euros de que o havia isentado ao longo de quatro anos.

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“Um particular residente em Lisboa, a propósito de uma dívida contributiva associada à sua actividade profissional de 1488 euros, vê a competência para o julgamento deslocada para o Tribunal de Mirandela, a cerca de 460 kms [quilómetros] da sua residência e a mais de cinco horas de viagem, por força de deliberação do órgão directivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social”, criticam os conselheiros. “José Guilherme Nunes vê-se obrigado a gerir o litígio a grande distância, incorrendo nos custos inerentes, designadamente com deslocações do advogado, e suportando todo o leque de inconvenientes e dificuldades acrescidas que a circunstância acarreta”, observam, considerando o sucedido “um ataque directo ao património” do putativo devedor.

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[Prática da Segurança Social representa] violenta ingerência na independência externa dos tribunais, claramente incompatível com a ConstituiçãoAcórdão do Tribunal Constitucional

Não é fácil apurar por que razão alguns destes litígios estão a ser dirimidos em tribunais a centenas de quilómetros da área de residência dos contribuintes, porque a tutela se recusa a dar qualquer tipo de explicação, apesar de ter sido questionada pelo PÚBLICO mais do que uma vez.


Mas as hipóteses avançadas pelo Tribunal Constitucional são pouco abonatórias para o ministério liderado por Ana Mendes Godinho. Dizem os juízes que ao ter nas mãos o poder de concentrar os processos nos tribunais administrativos e fiscais de primeira instância que se têm mostrado mais favoráveis às suas pretensões de cobrança, descartando aqueles “mais renitentes em adoptar leituras pro fisco”, é bem possível que o Instituto de Gestão Financeira “insufle de forma importante o sucesso global do seu contencioso, (…) com flagrante sacrifício da igualdade processual entre litigantes”.

Além do processo do marido, Luísa Bento tem em mãos o de um cliente que, morando na zona de Sintra, foi parar ao tribunal de Castelo Branco. A advogada não crê que seja para ganhar as causas contra os executados que a Segurança Social os acciona judicialmente em tribunais longínquos.

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"Subordinação do poder judicial à autoridade administrativa"

Um acórdão datado do final de Maio e subscrito por 12 dos 13 conselheiros do Palácio Ratton diz que esta prática representa “uma subordinação do poder judicial à autoridade administrativa e, como tal, uma violenta ingerência na independência externa dos tribunais, claramente incompatível com a Constituição”.

Isto porque um dos princípios que garante independência dos tribunais se relaciona com a aleatoriedade na distribuição dos processos. Ao estar legitimado por lei a escolher determinado tribunal para dirimir estas questões, fugindo assim às regras de competência geográfica vigentes no sistema de justiça, existe o risco de o Estado “produzir um efeito de asfixia no exercício independente da missão do poder judicial”.

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Só em 2023, o Constitucional pronunciou-se sempre neste sentido mais de dezena e meia de vezes. Bastariam três para que os representantes do Ministério Público no Palácio Ratton pudessem suscitar a declaração de inconstitucionalidade destas normas de forma definitiva.


Coincidência ou não, só um dia depois de o PÚBLICO enviar perguntas nesse sentido quer para este tribunal, quer para a Procuradoria-Geral da República esses representantes desencadearam o processo destinado a abolir de uma vez por todas regras que a esmagadora maioria dos conselheiros consideram violarem a lei fundamental e os direitos dos contribuintes executados. O destino certo deste processo é mesmo esse: a Segurança Social vai ficar impedida de escolher tribunais para reclamar dívidas.

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