28.7.23

Inteligência artificial. Os artistas portugueses e as máquinas a imaginar juntos

Mariana Duarte,  in Público


Das artes visuais à música, do cinema à performance, a IA ganha força nas artes portuguesas. Aponta caminhos aos criadores. “As novas experiências são muito estranhas, até deixarem de o ser.”


Em 2003, o artista português Leonel Moura escreveu um manifesto em que afirmava que as máquinas podiam fazer arte. “Na altura fui muito criticado. Vários artistas disseram que eu era louco, que nada disso ia acontecer”, recorda este pioneiro na aplicação da robótica e da inteligência artificial (IA) nas artes. Olhar presciente que se tornou presente, prelúdio de um futuro que ainda está só no começo, mas que já está, avassaladoramente, em todo o lado.


A IA chegou em força às artes visuais, à música, à performance, ao cinema, à literatura, ao design, com uma série de ferramentas que têm permitido aos artistas criar em colaboração com as máquinas, ampliando “as suas possibilidades criativas e estimulando novas formas de expressão”, diz Inês Cardoso, mais conhecida por Carincur, artista multidisciplinar de 30 anos que opera nas intersecções entre música, performance, instalação e tecnologia.


“O interessante no que estamos a viver é que a IA, que agora se chama generativa – porque tem capacidade de gerar coisas que não existiam antes, tem esse aspecto de novidade e criatividade –, entrou no campo artístico e está a provocar uma mudança na história da arte”, observa Leonel Moura, 74 anos. Na década de 90 já fazia experiências com IA (mas que “nada tinha a ver” com a de hoje), concebendo, em 2001, o primeiro dos seus muitos robôs pintores. “A evolução da ciência, da tecnologia e da automação sempre teve implicações nas artes.”


“A arte sempre existiu numa relação complexa, simbiótica e em contínuo desenvolvimento com as capacidades tecnológicas de uma cultura. Essas capacidades compelem a arte que é produzida e informam a maneira como esta é percepcionada pelo público (...) A inteligência das máquinas vai transformar a sociedade de maneiras que são difíceis de imaginar a partir do ponto de vista actual; num futuro próximo vai expandir o nosso entendimento da realidade e dos nossos processos cognitivos”, resume Blaise Agüera y Arcas, engenheiro de software e designer latino-americano, num texto publicado em Atlas of Anomalous AI (2021), livro que explora a nossa relação com vários sistemas de conhecimento, dos ancestrais aos emergentes, cartografando uma espécie de pré-história da IA.


Ferramentas como o ChatGPT, DALL-E, Midjourney, Stable Diffusion ou Overdub estão na ordem do dia. Gritam novidade, possibilidade, futuro. Mas não serão elas “apenas” uma versão mais avançada e poderosa – para o bem e para o mal – do acto de sonhar, através do qual damos vida a coisas que estão na nossa imaginação, como o homem do conto de Jorge Luis Borges, Ruínas Circulares, que tentou criar outro homem através dos sonhos? Ou da ficção científica e especulativa, como a história dos Oankali, a espécie alienígena com habilidades e tecnologias impressionantes de Dawn (1987), da escritora Octavia E. Butler, ou o país subaquático povoado pelos filhos de mulheres africanas escravizadas, que foram lançadas grávidas para fora dos navios negreiros, imaginado pelo duo de música techno Drexciya?


“Estamos numa fase muito inicial desta tecnologia e ainda não conseguimos antecipar todos os perigos. Mas acredito numa coisa, bonita e positiva, que aconteceu com a introdução e expansão da IA: uma nova consciência colectiva sobre a existência de outros tipos de inteligências, lembrando-nos que há outros mundos que se sobrepõem ao nosso, que convivem com o nosso, que apontam outras visões e formas de pensar, o que é particularmente importante no contexto do Antropoceno e da emergência climática”, considera Joana Pestana, designer, investigadora e professora de 36 anos que desenvolve projectos no cruzamento entre tecnologia, design e novas literacias.

Um deles é Eden X: Estrutura Paradisíaca, Organização sem Centro, co-criado em 2022 com Mariana Pestana e Kevin Gallagher, que faz uso da IA para ensaiar, precisamente, um modelo social em que os recursos naturais seriam autogeridos por comunidades humanas e “mais-que-humanas” (depois da apresentação no festival Jardins Efémeros, em Viseu, o projecto terá uma nova iteração na Porto Design Biennale, a acontecer entre Outubro e Dezembro, desta feita com a IA aliada a outras tecnologias, nomeadamente a sequenciação genética).


O meio acha que a tecnologia é uma coisa do capitalismo e da ciência, e os artistas é que são os humanistas. Um disparate profundo: não há coisa mais humanista do que a tecnologia, desde a Idade da Pedra

Leonel Moura


Também para Carincur, a IA funciona como “um catalisador para uma exploração mais profunda da condição humana” – e “como parte integrante do discurso da performance sobre a natureza da consciência e do eu”, como um prolongamento do corpo e uma extrapolação de binómios como realidade vs. ficção. Odete, artista interdisciplinar de 27 anos que está a recorrer à IA para conceber Artifício, a sua primeira exposição individual numa instituição (inaugura a 10 de Outubro nas Galerias Municipais de Lisboa), encara esta tecnologia como “um método historiográfico”. Como “uma ferramenta de análise da sociedade e da visualidade, dos seus significados e das suas falhas”, dando assim continuidade à “obsessão” da artista “com dimensões espectrais da tecnologia”.


Já Gabriel Abrantes, artista visual e cineasta de 39 anos que sempre esteve atento às potencialidades e aos conflitos das novas tecnologias, explorou a relação entre pintura e IA na sua mais recente exposição individual na galeria Francisco Fino, em Lisboa, Nobody Nowhere, para pensar sobre as repercussões existenciais e sociais, emocionais e criativas “da tecnologia, do mundo digital e da IA naquilo que é a prática artística de um pintor ou de um videoartista”.

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Fascínio/ansiedade/negação

Os artistas portugueses presentes nestas páginas – de diferentes gerações e disciplinas, éticas e práticas – falam-nos sobre as suas experiências com IA e as implicações artísticas, políticas, laborais e filosóficas desta tecnologia “que veio para ficar” e cujo veloz desenvolvimento vai ser “impossível de travar”.

O fascínio pela IA é partilhado. Na maioria dos casos, mistura-se com um sentimento de ansiedade e de perplexidade, de “estranhamento” perante algo que, pelo menos por agora, é impossível de ver e agarrar na sua totalidade. Essas inquietações acabam por ser também um dos ímpetos das criações. Um modo de endereçar e inquirir as limitações, as vertigens e as novas tácticas de existência da tecnologia através da própria tecnologia; uma forma de fabular utopias entre as falhas e as forças.

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Apesar de tudo, ou por causa de tudo, é preciso lembrar que a IA não é uma entidade independente, uma criatura fora do controlo dos humanos. Somos nós que a criamos e/ou alimentamos. “As máquinas precisam de nós, e nós precisamos delas”, refere Leonel Moura. “A IA ainda está num plano colaborativo porque continua a precisar do prompt [instruções textuais dadas por quem utiliza]. Ou seja, o artista tem de escrever alguma coisa para obter alguma coisa.”

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“Mesmo antes da Revolução Industrial, sempre existiram tecnologias que foram mediadas e criadas por nós. E sempre que veio um avanço tecnológico, vieram com ele o medo e a ideia de substituição: perda de emprego, competição com habilidades técnicas, perda de significado e propósito, receio de perder a conexão emocional e a empatia que vêm com as interacções humanas. No entanto, trouxe-nos tantas outras coisas com um valor de expansão”, assevera a artista, assinalando que a IA representa “uma série de possibilidades artísticas transformadoras”.

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A artista nota ainda que a IA lhe permitiu potencializar técnicas "que com um sistema tão precário como o do sector da cultura em Portugal – poucos recursos, pouco tempo de investigação, pouco investimento, equipas reduzidas – seriam impossíveis de concretizar". Além disso, "a transversalidade das disciplinas" fez com que aprofundasse e questionasse "novas práticas e dispositivos de apresentação".


“O mais importante é entender que, embora a automação se tenha tornado cada vez mais parte da produção artística desde antes da imprensa de Gutenberg, este novo conjunto de ferramentas é uma categoria totalmente diferente. A principal diferença agora é que temos muito poder de computação para apoiar-nos em tarefas, disponível para muitas pessoas”, sublinha Mat Dryhurst, artista, pensador e investigador britânico. É um dos principais e mais incansáveis pedagogos sobre o uso de IA e outras tecnologias nas artes, percurso que tem sido feito ao lado da sua companheira, a artista e compositora Holly Herndon.



Segundo Leonel Moura, essa desmultiplicação da IA tem deixado “o meio artístico em pânico”, tanto em Portugal como lá fora, porque este “não soube reagir”. Está em negação, declara, e “por isso vai ficar desfeito”. “O meio acha que a tecnologia é uma coisa do capitalismo e da ciência, e os artistas é que são os humanistas. Um disparate profundo, pois não há coisa mais humanista do que a tecnologia, desde a Idade da Pedra. Ela ajuda sobretudo os humanos.”


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“A banalidade de um mundo 100% digital”

Tanto para Leonel Moura como para Mat Dryhurst (sendo o britânico menos cáustico que o português), o que está em causa é uma nova etapa na história da arte, que obrigará a novos pactos sociais e ao desenho de uma nova economia capaz de acompanhar, ou pelo menos de não perder tanto o fio à meada, uma tecnologia em constante mutação. “Há uma tendência lamentável para se ver a arte como algo fixo. Não acho que a história da arte reflicta isso. A nossa definição de distinção artística está sempre a mudar e continuará a mudar”, observa Dryhurst.


Não tenho dúvidas de que a Netflix vai produzir guiões e fazer filmes com IA, pois é um processo mais industrial e onde a parte social e de culto de personalidade é menos forte do que no mundo das artes (...) Os actores estarão a salvo, mas com os guionistas é complicado

Gabriel Abrantes


“As ferramentas de IA serão integradas nas práticas artísticas. Algumas pessoas vão usá-las como meio principal, outras como meio secundário, outras vão evitá-las.” O artista e investigador reconhece que há certas profissões no ecossistema cultural que poderão estar em risco, mas não se alinha com visões apocalípticas. “A IA não pode substituir o papel do artista, pois a arte cumpre um papel social complexo. Se as pessoas dizem que a IA substituirá os artistas, questiono o quanto percebem elas de arte. É claro que a introdução de novas e poderosas ferramentas terá um impacto significativo na economia das artes, isso é inevitável, e novos tipos de práticas artísticas surgirão daí.”


“É importante lembrar que a expressão artística humana continua a ter um valor inestimável”, reforça Carincur. “Nós seguimos os humanos e aspiramos a ser humanos. Vamos continuar a querer saber o que os artistas pensam e como pensam. Pode haver muita excitação inicial com um romance produzido pelo GPT-4 [o mais recente modelo do ChatGPT, da OpenAI], mas essa novidade vai desgastar-se rapidamente”, acrescenta Mat Dryhurst.

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Afinal, as insuficiências humanas são também o que nos fazem relacionar com a arte e os artistas. “Muito do seu valor está no prazer da criação de um discurso estético, político e pessoal em interacção com o mundo social”, aponta Abrantes, para quem o uso de imagens produzidas com o DALL-E, uma ferramenta ainda com uma linguagem “limitada” e uniformizada, serviu também “como um comentário sobre o que seria a banalidade de um mundo 100% digital”.


No entanto, o artista e cineasta acredita que num certo flanco do cinema o cenário “é muito diferente” das artes visuais. “Não tenho dúvidas de que a Netflix vai produzir guiões e fazer filmes com IA, pois é um processo mais industrial e onde a parte social e de culto de personalidade é menos forte do que no mundo das artes”, afirma. “Os actores estarão a salvo, não nos interessa assim tanto ver avatares digitais, mas com os guionistas é complicado: não há um culto de personalidade associado a estes profissionais e é um trabalho que pode ser feito remotamente”, analisa o criador, que tem usado o ChatGPT regularmente não como “output criativo”, mas para utilizações “mais mundanas, e reflexões pessoais e sentimentais”.

“Considero muito acertadas as actuais greves e reivindicações dos guionistas nos EUA, apesar de, infelizmente, achar que vão ter muito pouco sucesso, porque infelizmente todos os exemplos históricos que temos de sindicatos que lutaram contra a inovação tecnológica para proteger trabalhadores nunca tiveram grande eficácia.”


“Considero muito acertadas as actuais greves e reivindicações dos guionistas nos EUA, apesar de, infelizmente, achar que vão ter muito pouco sucesso, porque infelizmente todos os exemplos históricos que temos de sindicatos que lutaram contra a inovação tecnológica para proteger trabalhadores nunca tiveram grande eficácia.”


Tal molda necessariamente o modo como se utiliza e interpreta a tecnologia. Vemos isso em Odete, cuja abordagem à IA é mais um capítulo da sua investigação assente num método de “arqueologia paranóica” e numa historiografia especulativa que conspira contra a escrita hegemónica da história, procurando inscrever nela corpos, práticas e epistemologias que foram obliteradas. “O que me interessou foi olhar para a IA como se fosse uma espécie de arquivo performativo. Não é um arquivo da humanidade, estanque, não é uma sala em que tu entras e procuras, mas um arquivo que vai sendo alimentado e que está constantemente a ‘performar’ os seus significados e suas constantes alterações”, explica a artista.

“Isso tornou-se interessante quando comecei a usar a IA para brincar com ideias do passado. Por exemplo, pedi ao DALL-E para me dar uma pintura a óleo do barroco europeu que retratasse uma comunidade de mulheres trans a experimentar perfumes num laboratório cheio de cores. Comecei a criar estas especulações históricas, a usar a AI para produzir estética do passado, para eu brincar com a própria fiabilidade e as ausências do arquivo.” Há, nesse sentido, uma espécie de ajuste de contas, uma utopia, “uma possibilidade de sonhar”.

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É como quando estamos a subir uma montanha e só vemos um bocado do que vai aparecer. Há momentos que são de encantamento e há outros que nos assustamJoana Pestana


Ao mesmo tempo, o projecto permite um questionamento ético “do que é a corporalidade” da IA. “A IA só existe porque há uma série de explorações de materiais do planeta que permitem que se criem máquinas que sustentam esta tecnologia”, aponta Odete. E isso leva-nos novamente à pré-história da IA. “A narrativa da exposição é também sobre a IA ser uma tecnologia que resulta de uma mais básica, que é o fogo. Os humanos descobriram o fogo, conseguiram dobrar metais com ele, a partir dos metais conseguiram fazer armas, fazer guerras, fazer jóias; a tecnologia avança, surgem os computadores, até que se conseguiu a desmaterialização de uma consciência onde pairam vários fantasmas e espectros dentro do algoritmo, como as personagens trans que a IA me devolveu.”


Neste trabalho ainda em andamento, Odete conseguiu identificar falhas e limitações nas representações “da sexualidade, de certos tipos de violência, como a escravatura, e de certos corpos”. “Quando eu queria produzir personagens trans, a IA tinha sempre uma obsessão com androginia – dava-me uma mulher com barba, ou um homem com saia. A percepção da IA de uma pessoa trans é gender trouble.” O que se tornou num tópico de reflexão “curioso”.


[...]Regulamentar estraga “receita secreta”

Dizíamos, no início desta conversa (que já vai longa e particularmente extenuante para a escriba: nada nestes quase 30 mil caracteres foi produzido com a ajuda do ChatGPT), que a IA é uma ferramenta criada, alimentada e operada por humanos. Mas é uma humanidade parcial, ainda sem controlo real da coisa (se é que alguma vez irá tê-lo).

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“A Meredith Whittaker, CEO da Signal Foundation, diz que a IA é um derivado da vigilância porque depende dos megadados, da extracção de dados. Ou seja, está vinculada à existência de uma rede de observação permanente”, contextualiza Joana Pestana. A vigilância foi, aliás, o ponto de partida da designer para chegar à IA.


“Tem muito a ver com o momento em que eu estou em Londres a fazer o meu projecto final de mestrado, em 2014, no rescaldo do caso Edward Snowden. A minha investigação foi muito inspirada por toda a discussão de então sobre privacidade, dados pessoais e vigilância”, recorda a investigadora e professora sediada no Porto. Este trabalho acabou por conduzir ao desenvolvimento de outros projectos, entre eles a curadoria e co-curadoria de duas exposições entre 2020 e 2021 – respectivamente, Scrolling the Arcane, onde a IA já estava presente, e Omnisciência: Estratégias de Fractura e Fuga – que se debruçaram sobre “a temática da vigilância e os estados de ansiedade, de impotência e de desconhecimento perante a complexidade tecnológica que se tinha vindo a erguer à nossa volta”.


A priori há uma série de práticas que são excluídas porque depende sempre de quem alimenta a IA. Por mais que pareça uma perspectiva universalizante do mundo, nunca o é. Quando uso o DALL-E,

entristece-me não saber quem alimentou e como alimentou. Devia haver transparência

Odete


No ano passado, com Eden X, Joana Pestana fez uso da IA de forma mais directa. “O projecto consistia na criação de uma plataforma online de discussão, que ensaiava um modelo de gestão descentralizado. O objectivo era o desenho de um jardim a partir dessa conversa. Depois houve uma instalação física em Viseu, no âmbito do festival Jardins Efémeros.” Este debate envolveu artistas e investigadores de várias áreas (Joana Rafael, Miguel Teodoro, Patrícia Portela, entre outros), mas também entidades “mais-que-humanas” co-criadas pelo artista luso-venezuelano Nestor Pestana com o ChatGPT-3. Uma delas, o Vento, foi gerada com recurso a textos do povo indígena Selk'nam.

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“Temos feito muito para consciencializar os artistas sobre como o seu trabalho é usado na IA, fornecendo-lhes meios para que estes possam optar por participar ou não participar [o chamado opt-in e op-out] nas bases de dados e entregando essas solicitações às empresas de IA e às plataformas que hospedam conjuntos de dados”, explica Dryhurst.

“Se o nosso padrão for adoptado de forma mais ampla, poderá ser o fundamento para construir algo. Nunca será perfeito, mas achamos que a nossa abordagem pode funcionar na maioria dos ambientes comerciais. Temos defendido esses tipos de direitos de dados há dez anos.” Até ao momento, conseguiram ajudar a retirar 1,4 mil milhões de imagens e a resposta da indústria “tem sido muito positiva”, assinala o artista. “Estamos a abrir caminho e a estabelecer o opt-out como conceito. Vai demorar a espalhar-se.”


Para Dryhurst, mudar o facto de “o trabalho dos artistas não ter sido levado em consideração no treino das bases de dados e no desenvolvimento destes modelos”, nem no desenho de uma nova economia, depende também dos criadores. Joana Pestana sublinha a importância de as entidades governamentais desenharem legislação para “estabelecer limites nas questões de legitimidade e consentimento”, sem “o lobby das entidades corporativas”, mas lembra que a história “não dá grande esperança” nesse sentido. De resto, concorda com o colega britânico quanto “à tomada de responsabilidade” por parte de artistas e designers.


“Temos de pensar sobre como podemos reivindicar um uso crítico desta tecnologia. Assim como um arquitecto sabe em que moldes foi extraído o mármore que utiliza num projecto, nós também não deveríamos ser alheios ao material com o qual estamos a trabalhar” – até porque a possibilidade de as ferramentas de IA emularem cada vez mais linguagens, seja de autores emergentes ou estabelecidos, mortos ou vivos, será cada vez maior “e mais capitalizável” por empresas.

Desmistificar

Este processo de responsabilização implica, por um lado, que os artistas e designers não se alienem dos seus meios de produção, seguindo a velhinha máxima de Marx. “Temos de perceber como podemos construir, ou contribuir para construir, os nossos modelos de treino, de forma a não sermos demovidos de grande parte do processo criativo", assevera Joana Pestana. “A introdução da IA no terreno do design de comunicação, e também do design de produto, acelerou um afastamento que já estava em curso, desde a Revolução Industrial, em relação aos processos, aos modos de produção e de fabricação dos produtos.”

Por outro lado, é necessário deixar de “mistificar” esta tecnologia. “Falar destes sistemas como se fossem magia e como se as máquinas fossem independentes” resulta também numa perda cada vez maior do controlo sobre os processos criativos, nota a designer e investigadora. E serve para alimentar o ruído, o pânico e o desconhecimento em torno da IA. Pestana diz que “é urgente” uma maior literacia sobre este assunto.

“Nós não podemos abster-nos de compreender o que é isto, porque se não tivermos essa literacia podemos, sem querer, reforçar um discurso em que nós não acreditamos, que pode ser um discurso hegemónico vinculado a figuras de poder antidemocráticas, a monopólios e actividades corporativas com as quais nem concordamos. Temos de saber examinar aquilo que cada training set [conjunto de dados usados para treinar um sistema IA] promove ou discrimina, aprova ou rejeita, torna visível ou invisível. Ao utilizar a IA, estamos a contribuir para um discurso cultural contínuo sobre a IA.”


o fundo, cabe aos artistas, e a toda a gente, olhar para a IA não apenas como um recurso tecnológico e criativo, mas como uma peça já totalmente inescapável do “tecido cultural, político, social e económico”. O resto, dos possíveis apocalipses aos muito aguardados saltos da humanidade, ou tudo o que está pelo meio, só o tempo dirá – o que, pela velocidade da coisa, pode ser já amanhã. Terminemos com o optimismo de Mat & Holly: “As novas experiências são muito estranhas, até deixarem de o ser.”

[artigo disponível na íntegra só para assinantes aqui]