31.7.23

Falta de casas ameaça execução atempada de grandes projectos do PRR

Victor Ferreira, in Público online

Contratação de pessoal esbarra na falta de oferta imobiliária em regiões de grande investimento nacional. Os calendários apertados do PRR quase que impõem a opção por trabalhadores já experientes.

A falta de habitação é um problema nacional. Fala-se muito em Lisboa e Porto, nas respectivas áreas metropolitanas, mas, noutras geografias, a situação repete-se. Em Évora, por exemplo, há uma cidade universitária e património mundial envolvida na transformação de Portugal num país produtor de aviões, mas a falta de casas para alojar dezenas de profissionais que é preciso contratar põe em risco a capacidade de cumprir este projecto apoiado pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) dentro do calendário, que é apertado e tem de ser respeitado.

“É terrível”, resume Miguel Braga, presidente da Empresa de Engenharia Aeronáutica (EEA), que lidera o consórcio Aero.next, de 34 entidades, cujo objectivo é contratar 350 profissionais, muitos deles recrutados no estrangeiro.

“A falta de habitação é, de facto, um drama que nós ainda não temos em Ponte de Sor – talvez tenhamos esse problema mais à frente –, mas já o estamos a ter em Évora. Não há oferta suficiente, os preços são equivalentes aos das grandes cidades. É o nosso maior problema neste momento”, afiança o mesmo responsável.

O consórcio quer dar um passo “ambicioso”: comercializar a partir de Portugal um produto completo. O que, a acontecer, será uma mudança substancial para a economia nacional.

No que diz respeito à aeronáutica, o país participa hoje em dia nas fases de engenharia, nas cadeias de valor de pequenos sistemas e subsistemas, mas “falha na integração”, explica o mesmo responsável. Por outras palavras, não teve até hoje a capacidade de integrar tudo o que desenvolve num sistema de produção que permita que um avião, tripulado ou não, saia completo do país, mas a voar. Isso tem um custo, porque significa que o país “não está nas fases de maior valor e maior intensidade tecnológica”.

“Trabalhamos no início e no fim. Com este consórcio, queremos criar o primeiro integrador final português – que monta e vende o avião”, explica Miguel Braga.

Trata-se de impulsionar a indústria aeronáutica – que está a criar raízes em Ponte de Sor (distrito de Portalegre), mas com ramificações a muitas outras cidades do Norte ao Sul do país –, para patamares onde hoje temos Alemanha, França ou mesmo Espanha. Mas o país não tem os profissionais necessários para cumprir esta ambição, até 2026. Faltam em quantidade e os que há não cobrem todas as disciplinas ou áreas de conhecimento que a produção de aviões exige.

Como tal, a solução é procurar profissionais no mercado mundial. Muitos vêm ou virão do Brasil, mas dado que o prazo é curto, por imposição do PRR, é preciso recrutar pessoas com experiência, seniores na sua actividade, que possam entrar ao serviço de imediato porque não há tempo para períodos de aprendizagem.

Tudo isso esbarra na tal falta de habitação. “Estes projectos são feitos com pessoas altamente qualificadas que muitas vezes nem existem em Portugal; estamos a falar de gente com senioridade e que, se as conseguirmos atrair, virão com as suas famílias. Estamos, portanto, com um problema muito sério, porque não se encontra habitação para estas pessoas. Não quero antecipar-me, mas isto pode ser, desde logo, o primeiro grande constrangimento ao cumprimento na totalidade das actividades em tempo útil”, frisa Miguel Braga.
Planear transportes

Não é o único grande projecto de investimento apoiado pelo PRR a lidar com este problema. Mas o alerta deste consórcio, que vai investir mais de 120 milhões de euros (75 milhões no Alentejo), é o “aviso mais veemente feito até ao momento”, anota o presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento (CNA) do PRR, Pedro Dominguinhos, que prometeu reunir-se com os parceiros deste consórcio e acompanhar o tema junto do poder local e nacional.

“Há muitos municípios com intenções de investimento na área da habitação, até com apoio do PRR, mas estamos a falar de alojamento a custos sociais ou controlados. Como tal, não se destinam a resolver este problema e, mesmo que pudessem, as casas não estariam prontas a tempo”, prossegue o presidente da CNA.

O tempo de execução é a variável crucial. Fazer casas demora o seu tempo, mas tempo é o recurso menos abundante no PRR, que tem de ser concluído até 2026, nalguns casos até antes, dependendo do calendário que foi acertado com a Comissão Europeia. Por isso, esperar que a oferta imobiliária cresça para depois contratar pessoas que os projectos do PRR exigem não é solução.

Pedro Dominguinhos cita medidas que poderiam diminuir as dificuldades, pelo menos no curto prazo. Dá como exemplo a empresa norte-americana que se instalou perto do Montijo e reservou ali toda uma ala de uma unidade hoteleira para os seus trabalhadores, num aluguer de longa duração. A empresa não está envolvida no PRR, mas o seu exemplo pode inspirar outros a seguir-lhe a peugada.

No Algarve, por outro lado, há empresas a construir habitação para trabalhadores, mas essa solução não tem impacto no imediato. Melhor seria, conclui Dominguinhos, que se encontre um plano de mobilidade nos municípios das regiões onde este problema se agudiza.

“As comunidades intermunicipais são autoridades de transporte. Seria interessante que localidades vizinhas das regiões onde esta falta de habitação é um problema para os projectos do PRR pudessem ser alternativas de residência, mas isso implica ter um plano de transporte público. Não só poderia mitigar as dificuldades das entidades envolvidas no PRR, mas também, ao mesmo tempo, poderia contribuir para o repovoamento de alguns destes sítios que estão a ficar sem moradores.”
A “fábrica de patentes” em Elvas

Sines não tem habitação que chegue para residentes habituais e o problema agravou-se com os muitos residentes não-habituais que nesta altura demandaram aquela região por trabalharem para construtoras e outras empresas envolvidas em investimentos na zona industrial de Sines.

A visão do Governo para Sines é enxertar ali um novo pulmão económico. Cada projecto industrial de energia renovável (como o hidrogénio) ou digital (como grandes centros de dados) é um alvéolo para oxigenar a produção nacional de valor ou riqueza.

Mas se o parque habitacional actual já não chega para estas encomendas, o cenário só piora quando se juntam os projectos do PRR que se vão desenvolver naquela região. É preciso contratar mais pessoas na fase de desenvolvimento e manter pessoas depois do investimento, algo que preocupa os autarcas da comunidade intermunicipal e das entidades que em Sines já sentem a pressão de fazer avançar os seus investimentos com o dinheiro do PRR.

Quase às portas de Elvas, o PRR está a financiar o crescimento de um laboratório colaborativo, o InnovPlantProtect (Inpp). Aprovado pela FCT em 2018, constituído juridicamente em 2019, nasceu, na realidade, com a pandemia. E nem por isso perdeu a ambição. Pelo contrário: o PRR deu-lhe um impulso ainda maior, graças ao financiamento europeu acrescido.

Nestes três anos, o Inpp cresceu de zero para 45 trabalhadores. São 16 doutorados, 24 mestres e quatro licenciados. Apenas uma pessoa tem somente o ensino secundário, e presta apoio logístico.

É uma força laboral “altamente qualificada”, frisa Pedro Fevereiro, que preside ao Inpp, e que, tal como sucede no consórcio Aero.next, teve de apostar na contratação de pessoas experientes, porque não há tempo para esperar que aprendam. Ali, no Inpp, o que se vê é laboratórios povoados por homens e mulheres que deixaram para trás cidades maiores em Portugal e no estrangeiro, lugares mais remotos como as Malvinas, para criarem algo de raiz no Alentejo despovoado: um laboratório que aplica ciência e quer produzir tecnologia nova com protecção intelectual.

Será uma espécie de “fábrica de patentes” que conta apresentar o seu primeiro pedido ainda este ano e tem mais duas ou três a caminho, revela Pedro Fevereiro. O Inpp pode receber até quatro milhões de euros do PRR, para 12 linhas de acção de protecção de culturas mediterrânicas contra pestes e doenças, em territórios de baixa densidade.

Um dos “inimigos” que está a tentar combater é a bactéria Xyllela fastidiosa, que ataca mais de 600 espécies de árvores em Itália, França, Espanha e Portugal. Milhares de árvores foram abatidas no país por causa desta doença que se transmite de planta para planta através de insectos.

Para conseguir ser eficaz em tão pouco tempo (o investimento termina em Março de 2026), foi preciso apostar em pessoas experientes. Em termos salariais, pagou-se 20% acima do mercado para ser atractivo trocar Oxford por Elvas, por exemplo, mas depois veio o banho de realidade, com a falta de casas.

“A oferta é muito reduzida, a linha de caminho-de-ferro que está a ser construída ainda aumenta mais a procura por alojamento e o sistema de transportes não ajuda. Não tem sido fácil, temos conseguido gerir a questão, que consideraria que é uma dificuldade nesta altura, não um problema. Pelo menos não há ninguém a viver no vão de escada”, sintetiza Pedro Fevereiro.