25.7.23

Hoje faço sessenta aninhos

Miguel Esteves Cardoso, crónica, in Público


Como hoje faço 68 anos, acho-me no direito de me queixar do excepcionalismo a que tenho sido votado ao longo da vida.


O meu pai toda a vida se divertiu a procurar – e a não encontrar – um português típico. Fisicamente português só encontrou um, nosso amigo de infância que depois escolheu como cardiologista.


Espiritualmente português é que não havia ninguém – só ele. Claro, porque isso até é uma definição do português espiritualmente português: não haver mais ninguém. Só nessa solidão é que se consegue ser verdadeiramente tuga.


Os portugueses são especialistas no excepcionalismo, tornando cada pessoa uma excepção. Se alguém diz que não gosta de torresmos, contra-atacam logo "isso és tu, que és de Braga", ou "isso és tu, que és esquisito", ou "isso és tu, que não sabes o que dizes".


A síndrome Isso És Tu (IET) estraga todas as discussões. Os ingleses têm o "and yet..." para poderem desdizer tudo. Digo que gosto de torresmos e o céptico do inglês diz "e no entanto...", obrigando-me a confessar que sim, que, se calhar, não gostava de ver como é feito.

Como hoje faço 68 anos, acho-me no direito de me queixar do excepcionalismo a que tenho sido votado ao longo da vida. A mim dizem-me sempre "isso és tu que és meio-inglês" ou "isso és tu que viveste muito tempo lá fora".

O último que me disse isso – "tu não contas, porque és mais estrangeiro do que português" – tinha 42 anos, com três deles passados nos EUA a estudar.

Eu bem lhe disse que dos meus 68 anos só passei seis deles fora de Portugal, vá lá, oito com todos os estudos e todas as viagens. Isso significa que tenho 60 anos inteiros de Portugal, dia e noite, Verão e Inverno. Ele só tem 39. Mas acha-se no direito de me pôr de parte.

"Ah, mas és meio-inglês." Mas o meu avô português era anglófilo e o meu pai também, até porque se licenciou na Inglaterra, antes de ter conhecido a minha mãe. É muito português gostar muito da França ou da Inglaterra ou doutro país qualquer por quem se tenha consideração.



A verdade é que ninguém é cem por cento português.

Até tem mais graça ser-se só um bocadinho.

O autor é colunista do PÚBLICO

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