Luciana Leiderfarb Jornalista, in Expresso
E de repente acordamos um dia de manhã - uma manhã comum, ventosa, quente – e um velho mito morreu. Um mito daqueles enraizados na linguagem, o inventor da “insustentável leveza” em geral, que tantos bons títulos deu ao jornalismo. A insustentável leveza não era coisa leve, nem nada que se parecesse. No baile de máscaras da escrita, um título pode esconder frases como esta, e logo no início da leitura: “Parece incrível mas, ao folhear um livro sobre Hitler, comovi-me com algumas das suas fotografias; faziam-me lembrar a minha infância passada durante a guerra; diversas pessoas da minha família morreram nos campos de concentração dos nazis; mas o que eram essas mortes comparadas com uma fotografia de Hitler que me fazia lembrar um tempo perdido da minha vida, um tempo que nunca mais há de voltar? Esta minha reconciliação com Hitler deixa entrever a profunda perversão inerente a um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência de retorno, porque nesse mundo tudo se encontra previamente perdoado e tudo é, portanto, cinicamente permitido.”
O autor de “A Insustentável Leveza do Ser”, que atravessou a II Guerra Mundial numa Checoslováquia ocupada pelos nazis, que viu o seu país a ser tomado pelos soviéticos em 1948 e assistiu ao esmagamento armado da Primavera de Praga em 1968, que se exilou em França, em 1975, e foi privado da sua nacionalidade checa em 1979; esse autor, que leu os sinais de uma Europa em falência identitária, que escreveu filosofia incrustada como pedras preciosas nos seus romances, chegou aos 94 anos para observar, desde a sua casa em Paris, mais uma guerra europeia, a guerra que não ia acontecer porque a paz (qual paz? onde?) se instalara no continente há mais de 70 anos. Na semana em que morreu, o opúsculo “Um Ocidente Sequestrado ou a tragédia da Europa Central” - um artigo publicado em 1983 no “Le Débat” - saía pela D. Quixote em Portugal, pela primeira vez, incluindo também um discurso de Kundera perante o Congresso dos Escritores da Checoslováquia, em 1967, intitulado “A Literatura e as Pequenas Nações”.
Lemos: “Em 1983, no mês de setembro, o diretor da agência de imprensa da Hungria, alguns minutos antes de o seu gabinete ter sido arrasado pela artilharia, enviou por telex para o mundo inteiro uma mensagem desesperada sobre a ofensiva russa, lançada nessa manhã contra Budapeste. O despacho terminava com estas palavras: ‘Morremos pela Hungria e pela Europa.’ Que queria dizer essa frase? Ela queria certamente dizer que os tanques russos punham em perigo a Hungria, e com ela a Europa. (…) Ele estava pronto a morrer para que a Hungria se mantivesse Hungria e se mantivesse Europa. (…) No momento em que a Hungria já não seja Europa, isto é, Ocidente, ela será ejetada para fora do seu próprio destino, para fora da sua própria história; ela perderá a essência mesma da sua identidade.” É só mudar o contexto. Quem não considere estas palavras perigosa e premonitoriamente atuais não vive neste mundo e nesta Europa.
Talvez seja isso o que garante a permanência na História: ser capaz de, de algum modo, a antecipar. Por vezes, o gesto de antecipação radica no estudo aprofundado dos fundamentos que nos sustentam. As fundações, o chão. José Mattoso não combinou com Kundera morrer na mesma semana, mas é o que aconteceu. O historiador de 90 anos, que há muitos sofria da doença de Parkinson, deixou-nos um sábado, nasceu em 1933, foi durante duas décadas monge beneditino, depois professor universitário, grande medievalista que resumia a História como “o movimento da humanidade sujeita ao tempo”. Tive a sorte de me dar a última entrevista, em 2021, por escrito, que a fala já não tinha a fluidez de outrora, vinte perguntas às quais respondeu com a maior generosidade sobre um livro seu acabado de lançar, “A História Contemplativa” (Temas e Debates), onde fala das suas orientações como historiador e, entre muitas outras coisas, distingue a História vivida da escrita: “O que o homem fez desapareceu com o tempo, mas foi re-presentado, isto é, ‘tornado presente’ pelo que contou, pelo que escreveu e pelo que criou.”
Somos, portanto, escrita. É ela que resguarda o que sabemos de nós. E as histórias pessoais não deixam de ser História, assim, com H grande. Em 1975, quando Milan Kundera se mudava para França e José Mattoso se adaptava à vida laica, ingressando como professor auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, num outro hemisfério Jorge Luís Borges publicava “O Livro de Areia” e iniciava uma série de viagens ao lado de María Kodama, então a sua secretária. Ela compilou os pequenos textos que o autor argentino escrevia ao longo dessas visitas de cego, impressões sem olhos, ou melhor, sentidas a partir dos olhos de Kodama, que fotografava e descrevia para Borges fundir isso com o material da sua própria memória, com a literatura mítica que tanto apreciava, com poemas e versos, e as referências do seu próprio mapa interno e literário. “Atlas”, que sai agora pela Quetzal, é o resultado desses exercícios de viajante, e foi o último livro que o escritor publicou. Ele, que gostava de fazer os seus prólogos, disse naquele que abre o volume: “Não há um só homem que não seja um descobridor. Começa por descobrir o amargo, o salgado, o côncavo, o liso, o áspero, as sete cores do arco-íris e as vinte e tal letras do alfabeto; passa pelos rostos, os mapas, os animais e os astros; conclui pela dúvida ou pela fé e pela certeza quase total da sua própria ignorância.” E assim, foram a Roma, a Dublin, a Istambul, à Califórnia, a Veneza, a Atenas, a Genebra, a Lugano, aos bairros de Buenos Aires (claro), à vila uruguaio-portuguesa de Colónia do Sacramento.
Alguns lugares são simplesmente – complexamente, na verdade – ficcionais: “Na minha vida sempre houve tigres. Tão entrelaçada está a leitura com outros hábitos dos meus dias que não se verdadeiramente se o meu primeiro tigre foi o de uma gravura ou esse, já morto, cujo obstinado ir e vir pela jaula eu seguia, enfeitiçado, do outro lado das barras de ferro. (…) A esses tigres da vista e do verbo acrescentei outro que me foi mostrado pelo nosso amigo Cuttini, no curioso jardim zoológico cujo nome é Mundo Animal e que se abstém de prisões. Esse último tigre é de carne e osso. Com evidente e assustada felicidade cheguei a esse tigre, cuja língua me lambeu a cara, cujas garras indiferentes ou carinhosas se demoraram na minha cabeça e que, ao contrário dos seus precursores, cheirava e pesava. Não direi que esse tigre que me espantou é mais real do que as formas de um sonho, mas quero agradecer aqui ao nosso amigo esse tigre de carne e osso que os meus sentidos percecionaram essa manhã e cuja imagem regressa como regressam os tigres dos livros.”
E depois, há outras viagens, as dos antepassados. Os lugares de onde viemos. “Uma Pequena Cidade na Ucrânia”, editado pela Temas e Debates, é o livro de um historiador obcecado. Bernard Wasserstein, londrino que nasceu em 1948, professor na Universidade de Chicago, agarrou um dia numa cidade como um biólogo observa demoradamente uma molécula através do microscópio, e transformou-a em objeto de estudo. Tentou elaborar um dicionário biográfico de todas as pessoas que viveram em Krakowiec, e claro que não o conseguiu (era o esperado), embora a sua listagem atingisse o número monumental de 17 mil entradas, algumas, como diz o autor, nomes quase esbatidos, outras “histórias de vida que podem ser reconstruídas minuciosamente”. O livro não é esta listagem; não é, aliás, uma listagem. É uma espécie de ‘autobiografia’ daquela cidade ucraniana (que foi também polaca), um “espreitar pelo buraco” da fechadura – pelo crivo da sua história familiar e o ângulo que só ela lhe oferece - que pretende “observar e compreender como algumas das grandes forças que determinaram o nosso tempo puderam afetar as pessoas comuns”. Na história de uma pequena cidade, cujo nome se modificou algumas vezes, dependendo de quem estivesse no poder, pode encontrar-se a história de uma parte do continente europeu, mais próxima de Kundera do que de Mattoso, e bastante menos longínqua de Borges do que aquilo que parece.
OUTROS LIVROS POR ARRUMAR
FICÇÃO
“A Guerra Prometida”, de Marco Pacheco (Gradiva)
Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís 2022, de autor açoriano nascido em São Jorge e diretor criativo de uma agência de publicidade, o romance passa-se em Portugal, na Primeira República, e começa assim: “Alguns meses depois da pomposa inauguração do bairro operário Grandella, os garbosos edifícios neoclássicos onde funcionavam a escola e a creche para os residentes eram tudo o que aqui havia de elegante.”
“Vínculos Ferozes”, de Vivian Gornick (D. Quixote)
O “NYT” qualificou-o de melhor livro de memórias dos últimos 50 anos: “Gornick observa sem pestanejar tudo o que é esquivo, difícil, estranho e irresolúvel nela e nos outros – a solidão, a malícia sexual e a devoradora proximidade claustral de mães e filhas.” Nascida em Nova Iorque em 1935, a autora é ensaísta e jornalista, tendo dado voz ao ativismo feminista no jornal “The Village Voice”, no “NYT” e na “The Nation”.
“A Casa e o Mundo”, de Rabindranath Tagore (E-Primatur)
Do Nobel da Literatura indiano (o primeiro escritor não europeu galardoado), uma das suas obras-primas, traduzida diretamente do original bengali, há meio século ausente das livrarias portuguesas. Este romance épico foi publicado em 1916 e tem um carácter inovador, na medida em que coloca uma mulher como protagonista.
“Pingue-Pongue no Terraço”, de Luís Serra (Companhia das Ilhas)
Neste sétimo livro do autor nascido em Évora, em 1970, lemos: “não é um caminho / é uma cicatriz”. Em 2009, o crítico António Guerreiro traçou o retrato desta voz: “Estamos perante uma poesia que recusa a lógica discursiva. Todo o seu trabalho insiste no outro lado: nos jogos de sentido, nas ligações inusitadas, nos sentidos imagéticos que explodem por concentração vocabular e através da exploração de absurdos semânticos.”
“E Então, Lembro-me", de Catarina Costa (Guerra & Paz)
Depois de, há um ano, ter dado à estampa “Periferia” - que venceu o VII Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal -, surge agora este romance distópico escrito pela autora de Coimbra e narrado na primeira pessoa.
“O Quartel ou As Bochechas do General” de A.M. Pires Cabral (Tinta-da-China)
De um escritor premiado, nomeadamente em 2022 com o Prémio Ruy Belo, que já produziu vários romances e livros de contos e poemas - “Caderneta de Lembranças”, “Feliciano” ou “Frentes do Fogo” - mais uma obra que começa assim: “Contado não se acredita. Eis o que dizemos quando queremos pôr em evidência determinado sucesso em termos de inverosimilhança ou imprevisibilidade. Eu cedi ao impulso — ou talvez à tentação — de dizer exatamente o mesmo a abrir esta história, julgando que a encarecia, quando na verdade — vejo‑o agora — a estou a apoucar. O enredo do conto é de tal modo inabitual e inesperado que ninguém vai acreditar. Mas ainda bem que assim é, porque no dia em que os Leitores acreditarem numa história que eu conte é porque a mesma é frouxa — e eu quero que as histórias que conto sejam tudo menos frouxas.”
NÃO-FICÇÃO
“O Ódio a Si Mesmo”, de Alain de Botton (D. Quixote)
Pequeno volume no qual o autor e filósofo do quotidiano investiga o fenómeno do ‘ódio a si mesmo’, de onde vem, para que serve, como o superar. “Na origem de muitas doenças mentais está um elemento que não estamos habituados a ter em conta por si só como um fator da nossa infelicidade: o ódio a si mesmo. (…) O ódio a si mesmo é o fruto amargo de uma ideia enraizada de como deveríamos ser.”
“Terra Queimada”, de Jonathan Crary (Antígona)
O subtítulo do livro é: “Da era digital do mundo pós-capitalista”. Este ensaio de 2022 é demolidor no modo como o autor tece uma crítica da digitalização do mundo, concluindo: “Se é possível um futuro habitável e comum no nosso planeta, esse futuro será offline, dissociado dos sistemas e da atividade do capitalismo 24/7, que destroem o mundo.”
“Micromegas”, de Voltaire (Tinta-da-China)
No posfácio deste pequeno ensaio, Rui Tavares explica tratar-se de “um bom resumo da postura filosófica de Voltaire e talvez um dos manifestos mais claros e desenvoltos do seu pluralismo cético”. Às tantas, acrescenta: “É por isso que escrever pouco foi, para Voltaire, uma maneira de dizer mais.”
“Rita Lee: Outra Autobiografia”, de Rita Lee (Contraponto)
Segundo relato na primeira pessoa da artista e mãe do rock brasileiro, falecida este ano. Termina assim: “Hoje, já velhinha, está careta, tem pouquíssimos amigos humanos e mora numa casinha no meio do mato com seus bichos e suas plantas e é feliz para sempre. Fora o resto. The end.”
“História Global da Alimentação Portuguesa”, de José Eduardo Franco e Isabel Drumond Braga (Temas e Debates)
Um livro que revisita os hábitos alimentares nacionais do ponto de vista das suas interconexões e influências - as recebidas e as oferecidas -, tendo a globalização como chave hermenêutica. O volume tem 101 capítulos, nos quais escrevem 69 investigadores. E sobre o quê? Sobre o pão, o mel, o bacalhau, o queijo, a encenação à mesa, as especiarias, a comida portuguesa no Brasil ou nos textos de Gil Vicente, os gelados, a cerveja, o bolo Jesuíta, a ‘fruta feia’, o azeite, entre outros.