5.7.23

As vidas que cabem num palco. Aqui não se quer dormir à sombra da idade

Rúben Matos, in TSF

Há uma peça de teatro que quer ser o "Despertar da Teatral´Idade". O desafio é assumido por um grupo de teatro de reformados da função pública que decidiu aceitar o desafio da associação Além Mundus. Muitos vão pisar um grande palco pela primeira vez, para dar vida às histórias que marcaram as suas vidas.

A sala não é grande. O espaço é suficiente para que haja muita energia e alegria concentradas por metro quadrado. Os ensaios são já quase automáticos, ou não estivessem os preparativos no bom caminho há dez meses. "Vamos fazer da pancadaria. E seguimos até ao monólogo da Filomena", ouve-se na voz de Carolina Serrão, a diretora artística do projeto.

A pancadaria é, neste caso, uma luta de almofadas no dormitório de um colégio de freiras. A algazarra está instalada. De pijama vestido, deitadas no chão e bem agarradas a um mundo de almofadas, as atrizes são agora um grupo de miúdas em idade de rebeldia. Estão a representar, mas é indisfarçável a alegria e o entusiasmo de quem está a viver na pele uma vida que não a sua contando histórias que são suas. Filomena Barbosa é a protagonista desta cena. Na primeira pessoa, Filomena, viveu a juventude num colégio como este, mas em palco vai ser Filipa.

"O meu pai pôs-me a estudar num colégio interno em miúda. Só íamos a casa nas férias do Natal, Páscoa e Verão. Era um colégio de freiras e eu gostei muito de lá andar. Porque a educação era diferente da educação das jovens cá de fora", ouve-se em forma de monólogo, numa mistura entre a vida que viveu na infância e a vida que agora vive em palco. Esta é apenas uma das cenas que marca a peça "Despertar da Teatral´Idade", um projeto que nasce no âmbito do programa "Arte e Envelhecimento Ativo", uma parceria do Ministério da Cultura e da Direção-Geral das Artes.

Na peça que sobe esta quarta-feira ao palco do Teatro do Bairro, repetem-se, em 90 minutos, cenas de muitas vidas. "A graça de tudo isto é que, sem sabermos, fomos todas entrevistadas. Falámos sobre a nossa vida passada e alguns elementos foram trazidos para a peça. A peça tem um bocadinho de cada uma de nós", explica Maria do Rosário, uma das atrizes.

Em palco vão estar 13 atores - a maioria mulheres - que estão a dar os primeiros passos no mundo da representação, sempre acompanhados pelo ponto, numa homenagem a um papel que noutros tempos era indispensável nas salas de teatro do país.

Aurora Durães é Aida, a diretora má. No meio de uma luta de almofadas, é ela quem impõe a ordem. "Meninas, posso saber o que se passa aqui? A sua cama, menina Rosa, é essa?", pergunta.

Em palco, a reformada da administração pública vai relembrar a postura autoritária de outros tempos. Perguntamos-lhe qual foi o emprego que ocupou a sua vida profissional. "Era inspetora do Ministério do Trabalho. Quando me viam diziam que era aquela inspetora alta, loura e tal." E é difícil assumir o papel de má? "É facílimo", responde.

Este projeto da associação Além Mundus quer que o teatro seja o caminho para dar vida à idade. Aqui, olha-se para o passado, mas também não se esquece o futuro que está nas mãos dos jovens. É por isso que uma das cenas da peça tem, em tom mordaz, uma crítica social que quer estimular a reflexão.

"Ganham mal, não é? E trabalham muito? Se calhar nem subsídio de férias têm", atira uma das atrizes. O acrescento está na ponta da língua de outras das protagonistas da peça: "Não têm nem o subsídio de férias nem de Natal... É o recibo verde!", escuta-se nas palavras que dão voz a um texto que tem a assinatura de Carolina Campanela.
O apelo aos jovens

Numa das pausas do ensaio Aurora, Lurdes e Cristina, já despidas de qualquer papel, explicam que o apelo direcionado aos jovens é claro: há que ir à luta. "Estamos conscientes de que a nossa geração falhou. O mundo para os jovens está muito mau", resume Lurdes.

O dia 5 de julho de 2023 marca o fim de um processo que foi longo, e que foi repleto de muitas facetas. Os 13 intérpretes vão estar em palco no papel de atores, mas nos últimos meses foram também muitas outras coisas. "Criámos tudo em conjunto, desde o logótipo do projeto ao cenário. Levámos as máquinas de costura para os ensaios e costurámos tudo", explica-nos a voz que mais se ouve neste que é um dos derradeiros ensaios.

Carolina Serrão é a maestrina que nos últimos meses tem conduzido este elenco. A diretora artística do projeto acredita que os atores estão preparados, mesmo que o que acontece em cima das tábuas possa sempre ser marcado pela imprevisibilidade.

"Quando conseguimos o apoio, houve muita gente a dizer "Ai que nervos, e agora? O que vamos fazer?". O que fomos conquistando ao longo do tempo foi o grau de compromisso. Os nervos traem sempre. Mas essa é também a beleza do teatro. Há a beleza de tudo correr mal e tudo se desmoronar. Mas estas pessoas estão preparadas para improvisar, porque sabem o que é estamos a querer dizer e sabem contar a sua história", confia Carolina.

Para a maioria, esta vai ser a primeira vez num grande palco. É certo que os nervos podem dar sinal de vida. O entusiasmo não falta, os nervos já foram menos. Teresa Ramalhete, uma das atrizes, garante que o entusiasmo está lá. Os nervos não. "Se vai correr bem logo se vê. Eu encaro isto como uma brincadeira, porque a minha parte profissional está feita. Mesmo que me queiram despedir, com aquilo que eu ganho já estou despedida há muito tempo". Mas as despedidas a sério só acontecem mais logo no Teatro do Bairro.