19.3.15

Isaura Tavares. “Os portugueses são muito resignados. Vêem a dor como uma fatalidade”

Por Marta F. Reis, in IOnline

A investigadora da Universidade do Porto recomenda o novo filme de Jennifer Anniston, que reforça a importância de procurar ajuda

No brain, no pain”. Como não dá para descartar o cérebro, Isaura Tavares defende que o futuro passa por conseguirmos usá-lo mais a nosso favor para atenuar a dor. Por agora, a professora da Faculdade de Medicina do Porto que se dedica à investigação deste fenómeno biológico considera que evitar que a dor se torne crónica é fundamental. E acredita que o novo filme de Jennifer Aniston, “Cake”, pode ser uma boa chamada de atenção.

Porque sentimos dor?

É um mecanismo de defesa. A dor alerta-nos para potenciais agressões externas e internas, ajuda-nos a mobilizar para responder. É essencial à sobrevivência. Até há casos muito raros de mutações genéticas em que as pessoas têm uma sensibilidade atenuada à dor e vivem menos do que é normal. São capazes de andar com uma perna partida sem sentir nada.

Será um mecanismo dos mais primários que temos?

Sim, é um mecanismo que desenvolvemos há milhares e milhares anos e que os animais também têm, precisamente porque precisam de dor para sobreviver.

Que tipos de dor existem?

Há muitos tipos de dor e diferentes catalogações. Se calhar o mais relevante para o nosso dia-a-dia é a catalogação da dor com base na duração. E a esse nível temos a dor aguda, que nos alerta para uma agressão ao nosso organismo, como quando nos estamos a queimar ou temos uma bolha no pé. Isso leva-nos a reagir. E depois existe a dor crónica, que segundo a maioria dos autores é a que persiste mais de seis meses infernizando a vida das pessoas. Essa dor causa várias alterações e danos no nosso cérebro. Pode haver morte de neurónios, restruturações dos circuitos neuronais, degradação emocional e cognitiva.

Estas dores são desencadeadas de forma diferente?

Sim e a forma como o cérebro responde a cada uma também. O cérebro não é algo que está apenas ali parado a receber informação da periferia, por exemplo o tal estímulo de quando nos queimamos na mão. Numa situação de dor aguda o cérebro tem a tendência a inibir a dor. Mas quando é constantemente bombardeado com informação dolorosa, por exemplo uma lesão que não foi tratada, acontece uma coisa estranha: o cérebro em vez de inibir tem tendência a aumentar a intensidade da própria dor. É o que acontece na dor crónica.

O que acontece no cérebro quando nos dói um dente ou quando estamos magoados com alguém é diferente?

A dor de dente é uma dor física, o não significa que não haja sofrimento psicológico associado. Quando estamos magoados com alguém estamos a falar de dor psicológica, o que seguramente pode recrutar zonas do cérebro diferentes, mais ligadas ao processamento emocional. Agora em termos práticos pode ser parecido porque podemos sentir repercussões físicas, aquilo a que chamamos somatizar.

Como é que isso acontece?

Muitas vezes a dor activa as mesmas zonas que as emoções. O cérebro fica desregulado e começa a tratar informação de forma anormal. As pessoas em grande sofrimento sentem muitas vezes dores de estômago terríveis, não significa que lá tenham uma lesão. Mas como o cérebro está a processar de forma errada a informação que recebe do estômago há essa dor física.

Mas causando essa destabilização tão grande, para que servem as emoções negativas? Podíamos livrar-nos delas?

É suposto existirem porque somos seres emocionais, serão importantes no processo de socialização. Nem sempre se somatiza, temos é de conseguir controlar as emoções de forma a que o corpo não fique lesado, o que acontece com alguma frequência, numas pessoas mais que outras.

É por isso talvez que pessoas mais pessimistas têm pior prognóstico em algumas doenças?

Sabemos que pessoas catastrofrizam a dor, por exemplo que têm muito medo da dor de uma cirurgia, sentem mais dor. Há um efeito psicológico no físico. Os mecanismos do cérebro que controlam essas emoções negativas fazem com que o cérebro potencie a dor. Mas o contrário também pode acontecer. Veja-se ferramentas como o reiki ou meditação em que a pessoa consegue desenvolver competências de autocontrolo que são muito relevantes no controlo da dor, na sua atenuação. Há estudos em que se avaliou o cérebro dos participantes e constatou-se que as pessoas que fazem meditação de forma regular têm menor activação nas zonas cerebrais da dor. Pensar que o controlo da dor passa apenas pela toma de comprimidos não faz qualquer sentido.

Uma dor psicológica pode doer tanto como uma dor física?

A dor é uma experiência subjectiva. Temos escalas para medir a dor nos doentes antes e depois dos tratamentos mas não temos ferramentas nem escalas que nos permitam comparar doentes entre si. Podia pensar-se que a dor física doeria mais mas temos relatos no sentido oposto. Li um relato de um médico que pensava que a maior dor que tinha tido fora ao expelir um cálculo renal mas nunca imaginara que anos mais tarde lhe doesse mais ainda a noticia de que a filha tinha um cancro e que o tratamento não funcionara. Se a dor física já é dificilmente mensurável, a psicológica mais ainda.

Tendo em conta os seus mecanismos, há algum truque para enganar a dor?

Em primeiro lugar deve-se procurar um profissional de saúde. Mas no geral as pessoas podem tentar distrair-se, não estar num processo de ruminação. Isto é muito importante nas pessoas com dor crónica mesmo que haja uma lesão física. Costuma dizer-se “no brain, no pain”, ou seja, a dor acontece toda no cérebro. Há trabalhos interessantes nos EUA de investigadores que conseguiram ensinar aos doentes técnicas de “biofeedback” ao analisar em que circunstâncias o seu cérebro era mais ou menos reactivo à dor. Pode funcionar uma música calma, ver imagens do marido ou do namorado, actividade física. Com tudo o que se sabe hoje, o importante acima de tudo é que as pessoas não sofram em silêncio.

E isso ainda acontece muito?

Sim. Muitas pessoas ainda encaram a dor como uma fatalidade.

Os portugueses particularmente?

Creio que sim, somos muito resignados temos uma grande tolerância à dor.

Herança da matriz cultural cristã?

É possível, aquela ideia de suportar o sofrimento. É preciso ter a noção de que não é só a questão de aguentar. A forma como o corpo é condicionado deve levar a agir antes de a dor se tornar crónica, que pode até causar lesões a nível cerebral irreversíveis. Vai agora estrear um filme com a Jennifer Aniston que mostra bem a realidade de uma doente com dor crónica. A realidade americana…

É muito diferente da nossa?

Sim, lá as pessoas podem dar-se ao luxo de deixar de trabalhar com dor crónica quando os portugueses muitas vezes nem sequer podem faltar ao trabalho por receio de o perder. Cá ainda existe ainda uma desvalorização da doença. Mas essencialmente mostra como a dor, se não for bem gerida. por tornar as pessoas deprimidas, agressivas. E como é importante agir atempadamente.

Recomenda o filme?

Sim. Não só pelo registo da Jennifer Aniston mas porque é a primeira vez que há um filme tão centrado na dor crónica. O filme chama-se “Cake” precisamente porque pequenas coisas como fazer um bolo podem tornar-se impossíveis e a dor pode levar à depressão severa e suicídio. É um problema grave e devemos acabar com as desculpas do “é normal” ou “da idade”.

Toda a dor antes de ser crónica é tratável?

A dor é um sinal de alerta de algo que se for despistado a tempo tem mais hipótese de ser tratado. Se uma pessoa sente uma dor deve ir ao médico.

Qualquer dor?

Depende naturalmente da intensidade. E claro que há dores mais preocupantes. Se for uma dor no peito, suspeita de enfarte, deve ir de imediato. Mas no geral todas as dores que persistam ao fim de uma semana devem ser avaliadas. Quando é uma situação crónica os médicos de família encaminham para as unidades de dor nos hospitais que têm médicos, enfermeiros mas também psicólogos para as ajudarem a lidar com os aspectos mais emocionais, muitas vezes associados.

Falou do reiki. Muitas pessoas recorrem a terapias alternativas, não só essa mas também acupunctura, por causa das dores. E ouvimos falar de energia bloqueada e meridianos. Faz sentido?

Sou uma cientista e não sabendo o que é um meridiano e a dita energia e não sendo mensuráveis tenho dificuldade em entender. Mas no caso da acupunctura sabe-se que pode haver analgesia porque são estimulados centros onde passam nervos e há libertação de neurotransmissores associados que podem inibir a dor.

Portanto não sendo meridianos, é o sistema nervoso?

Sim. Mas há uma outra coisa que devemos ter em conta. Porque é que os placebos funcionam e algumas pessoas tomam comprimidos de açúcar ou farinha e melhoram? Se a pessoa ficar convencida que vai fazer algo que lhe tirará a dor pode deixar de a ter. Há sempre um facto psicológico, depende das crenças e expectativas.

Como é que uma dor psicológica passa a trauma?

É uma emoção negativa que é incorporada na memória e vai destabilizar o organismo. O stress pós traumático causa uma desregulação de todo o sistema nervoso e hormonal. E todas estas situações podem estar por detrás da dor crónica física.

O mesmo explica a dor aguda da perda?

Seguramente, a perda gera emoções negativas e pode, se não for bem ultrapassada, tornar-se um trauma.

Este tipo de dor dá para enganar?

Sabemos da psicologia é que o luto e enfrentar a situação é importante para que não fiquem sequelas. Não se conhecem bem os mecanismos neurobiológicos por detrás da regeneração e parece-me que a superação das dores psicológicas é um desafio ainda maior que a das dores físicas.

Porque é que choramos quando nos dói, física ou emocionalmente?

O choro é uma expressão emocional, uma forma de comunicação. Porque é que choramos mais quando dói? Não há nada que indique do ponto de vista biológico uma ligação entre os centros da dor no cérebro e as glândulas lacrimais. Mas está provado que chorar cria empatia no outro. E mesmo os animais de laboratório quando partilham uma jaula e um manifesta sinais de dor o outro animal cria empatia. E a empatia é um mecanismo que induz analgesia. Não digo que choramos de forma interesseira ou calculista, que sejam lágrimas de crocodilo, mas poderá ser um mecanismo para desencadear empatia nas pessoas que nos rodeiam. Somos muito complexos.

O que é que a intriga mais nesta área?

Temos feito muita investigação dos mecanismos de transmissão de dor mas ainda não conseguimos perceber por que motivo é tão subjectiva e até que ponto. Isso faz com que tratemos doentes que podem ser diferentes da mesma maneira. Temos de perceber melhor esta questão para ser possível uma abordagem mais individualizada e com menos efeitos secundários.

O que é mais problemático?

Temos os opióides que causam dependência, efeitos a nível digestivo ou perturbações a nível cognitivo. Claro que as pessoas não devem ter receio, porque todos os medicamentos têm riscos e vantagens, que quando são indicados é porque são superiores. Agora cativa-me esta ideia de dosear melhor e descobrir mecanismos que potencialmente nos permitiriam ser mais senhores do nosso cérebro.

Diz-se que é um mito que teremos muitas potencialidades por explorar no cérebro. Nesta área vê oportunidades?

Sem dúvida. Se conseguirmos potenciar mais as nossas capacidades inibidoras de dor poderá ser mais fácil reprimir ou controlar até as emoções negativas de maneira a que a dor não seja uma causa tão grande de sofrimento e incapacidade. Acho ainda que é uma área em que tem de haver mais diálogo entre os investigadores básicos e clínicos, para chegarmos com mais informação útil aos doentes.

Sendo o cérebro o centro da dor, é mesmo verdade que não dói?

Sim, o interior do cérebro não dói porque não tem nociceptores, os fiozinhos responsáveis pelos estímulos dolorosos.

É o único órgão assim?

Por exemplo o interior dos pulmões ou o baço também não doem. E no cérebro não temos dor mas temos dores de cabeça, porque há nociceptores nas áreas envolventes. Veja-se que naquelas cirurgias de estimulação cerebral profunda só se faz anestesia no crânio para o buraco e o doente fica acordado. Parece um filme de terror mas o doente não sente nada!

Porque é que será assim?

O cérebro está protegido pela caixa craniana, em termos evolutivos é um órgão muito bem protegido. Mas já tem tanto com que se preocupar que se calhar não dava espaço. Mas isto sou eu a especular.