26.4.16

"As pessoas acomodaram-se a ver que não há saída para a pobreza" - Entrevista a Lino Maia

Alexandra Figueira, in "Jornal de Notícias"

"Corremos o risco de instituições colapsarem"

"É urgente" que o Governo decida o valor das comparticipações para 2016, diz o presidente da Confederação Nacional das Instituições

Aos 68 anos, Uno Maia acumula a paróquia de Aldoar, no Porto, com a presidência da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, a CNIS. Diz ser "urgente" definir o valor das comparticipações do Estado às instituições particulares de solidariedade social (IPSS) para 2016 e acabar a avaliação das RLIS. as redes locais de intervenção social, um projeto de delegação de competências do Estado lançado pelo anterior Governo.

lá percebeu que estratégia o Governo quer seguir para a economia social?

Não há inflexão do percurso feito, haverá pontualmente questões a ponderar. Este Governo tem uma convicção clara: o Estado não se pode alhear das suas responsabilidades e confiar tudo ao setor solidário. O Estado é responsável pela universalização dos direitos sociais e este setor, que faz multo e faz bem, não chega a toda a parte.

O Governo suspendeu as RLIS, para a avaliar. lá tem conclusões?

Ainda está a ser feita uma avaliação, até porque o Estado não pode entregar tudo a este setor. Há serviços do Estado que têm de continuar a funcionar. Podem é funcionar em parceria ou. até, em instalações das IPSS. Mas o processo não está fechado. Há algum compasso de espera.

Gostaria de ver o processo acelerar?

Avaliar é positivo, mas que não seja "ad aeternum". até porque há expectativas e compromissos assumidos, despesas já feitas. É necessário não eternizar respostas importantes.

As IPSS devem poder decidir se uma pessoa deve receber o rendimento social de inserção, por exemplo?

Os serviços públicos podem ter maior neutralidade ou capacidade de avaliar as situações do que as instituições de solidariedade. Pode haver diferença de critérios entre instituições, demasiada permissividade ou rigor com esta ou aquela pessoa em específico.

O atual Governo renovou por meio ano o projeto das cantinas sociais e anunciou uma avaliação. Foi feita?

As cantinas vão continuar, mas é provável que diminuam os acordos de cooperação. Não tenho números concretos, mas tenho a sensação que estes acordos, em vigor por seis meses, poderão diminuir aqui ou acolá. A procura por cantinas sociais está a diminuir, uns 20%.

A sua perceção é que há menos 20% de pessoas a procurar as cantinas?

Sim, a nível nacional. Nos grandes centros urbanos houve uma diminuição de procura, mas nas zonas rurais tem aumentado. E em algumas zonas há vontade de dar um passo em frente: não a frequência da cantina, mas o fornecimento de cabazes de alimentos para que as pessoas façam a sua refeição em casa. Acontece mais nas zonas rurais, sobretudo por misericórdias, mas também por IPSS.

As IPSS já sabem o valor da comparticipação do Estado para 2016, no âmbito dos acordos de cooperação?

Não, nem pouco mais ou menos! Temos de ter em atenção os custos das respostas sociais, a inflação e o aumento do salário mínimo. que levou a uma atualização dos vencimentos de todos os trabalhadores. Temos de chegar a uma conclusão. É urgente, estamos adiantados no segundo trimestre e não podemos esperar mais tempo. Todas as instituições tiveram de atualizar o salário mínimo e estamos a receber os valores do ano passado. Desejo que não demore muito, é urgente. Há alguma ansiedade, há instituições a atravessar muitas dificuldades.

lá o transmitiu ao Governo?

Sim. Compreendo que o Governo está há pouco tempo em funções, encontrou dossiês importantes, mas é chegado o momento de avançar.

Como estão as finanças das IPSS?

Estão com dificuldades. Os dirigentes tém sabido, com o apoio da população. enfrentar as dificuldades, mas é importante que o Estado não se alheie. Há instituições que recorreram a linhas de crédito e fundos de reestruturação e estão com muitíssima dificuldade em pagar as prestações. Há casos, pouquíssimos, de incumprimento, mas podem aumentar. É importante. com os bancos e o Governo.
fazer o ponto da situação e rever. Corremos riscos sérios de algumas instituições colapsarem, fechar portas.

O Governo quer aumentar o número de creches, através de acordos com IPSS. lá há decisões tomadas?

É essa a intenção, mas não se avançou muito além de apresentar a intenção.

Pelo contrário, suspendeu a transferência de hospitais às misericórdias. É uma troca?

Não. A transferência dos hospitais para as misericórdias não é um assunto encerrado. Houve alguma inversão [na transferência', mas agora há alguma reversão. No Parlamento, o PS deixou passar a ideia de que o processo não é para ser fechado. Mas não é uma contrapartida. As creches são sobretudo para IPSS de proximidade. não são estas instituições que têm hospitais.

O Estado comparticipa as IPSS por utente, e não pela qualidade do apoio. Faz sentido mudar o sistema?

É importante ponderar, mas temos de dar outro passo. O país não é todo igual. O apoio domiciliário numa aldeia de Trás-os-Montes ou Alentejo é mais caro do que num centro urbano, mas é comparticipado da mesma forma. Temos de ter uma diferenciação positiva nas zonas mais deprimidas.

Como corre a aplicação dos fundos europeus para o setor social?

Está bastante morosa, é uma das nossas preocupações. lá estamos adiantados em 2016. é preciso avançar.

"É dramática a acomodação à pobreza"

Como é que Portugal está a lidar com a pobreza?

Há a sensação de que a situação é menos grave do que já foi. Na prática, não notamos melhoria. As pessoas acomodaram-se, habituaramse a ver que não há saída para a pobreza. Temos dois tipos de instituições de apoio: as IPSS e os grupos informais, como o Vicentinos. Não tem havido diminuição nos pedidos de apoio, até nalgumas zonas há a sensação de que estão a aumentar: dívidas que nunca serão pagas, dinheiro em falta para despesas essenciais... É dramática a acomodação à pobreza.

Que futuro tem um pais que se acomoda a ser pobre?

Quem tem responsabilidade. e os órgãos de comunicação social têm uma importância grande, não se pode acomodar. Nós temos algum sentido humano, perceção da dignidade da pessoa humana e dos seus valores, temos de inventar formas de sair deste ciclo. Não é só falando de esperança, é dando razões para esperança.

Que razões?

O combate à pobreza e a promoção da cidadania e da dignidade deve ser um desígnio nacional que envolva todos, sobretudo quem tem mais responsabilidade. Vejo o Parlamento e outras instâncias a perderem-se com questões de menor importância.

Fazem-se sucessivos planos e estratégias de combate à pobreza. O que está a falhar?

Quando os planos abundam, podem entrar em colisão uns com os outros e não surtem efeito. Devia haver um grande plano. Portugal tem imensas possibilidades de criação de emprego, bastava olhar para o interior! Há equipamentos devolutos e terras abandonadas e, por outro lado, necessidades e populações. Se criássemos um programa de desenvolvimento rural, canalizando recursos e vontades. poderíamos criar emprego, melhores perspetiva de vida, fixação de populações... Não tenhamos dúvidas, isto favoreceria a natalidade. Portugal sem os portugueses não existe.
Vejo muitas pessoas a querer isto, é preciso congregar vontades.
Não me conformo com este conformismo.

As pessoas acomodaram-se a ver que não há saída para a pobreza"