8.6.22

Sistema alimentar mundial é dependente de poucos países e frágil perante crises

Alexandra Prado Coelho e Infografia | PÚBLICO

Mercados de cereais “disfuncionais e com propensão para a especulação”, produção demasiado concentrada, países que importam tudo o que comem. Para travar a fome é preciso atacar os problemas estruturais.

A guerra na Ucrânia provocou uma crise alimentar que ameaça o planeta. Mas, defendem muitos especialistas, é preciso ultrapassar a visão conjuntural e perceber que, por trás, há um problema estrutural: a forma como produzimos comida é cada vez menos sustentável.

Perante o desaparecimento dos cereais da Ucrânia e da Rússia do mercado mundial, é possível tentar encontrar alternativas, que passam, por exemplo, por aumentar a produção em países como os Estados Unidos ou o Brasil, numa tentativa de dar resposta à procura mundial.

Mas isso é o equivalente a pôr um penso sobre uma ferida aberta e de grandes dimensões. Pode ajudar num primeiro momento, mas enquanto não se encarar o problema maior que está por trás, a situação só tende a piorar.

O Painel Internacional de Peritos em Sistemas Alimentares Sustentáveis (IPES-Food) divulgou, em Maio, um relatório especial no qual procura explicar “como é que o falhanço na reforma dos sistemas alimentares permitiu que a guerra na Ucrânia provocasse a terceira crise global no custo dos alimentos dos últimos 15 anos” e apresentar propostas “para evitar a próxima”.


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Assistimos, dizem os especialistas, a “um círculo vicioso de mudanças climáticas, conflitos, pobreza e insegurança alimentar que está a deixar milhões de pessoas altamente vulneráveis aos choques”. Se não se agir agora, “estaremos a avançar cegamente para as catastróficas e sistemáticas crises alimentares do futuro”.

Uma das consequências quase imediatas da guerra na Ucrânia – que impede em primeiro lugar a saída dos cereais armazenados neste país e, em segundo, as próximas sementeiras – são as restrições à exportação por parte de outros países exportadores (vinte, até agora), que procuram assim garantir reservas para si próprios.

Ou seja, nas palavras do relatório, há uma “queda na solidariedade internacional”, à qual se junta o impacto que a seca está a ter este ano em alguns dos países produtores – embora África seja, de longe, o continente mais vulnerável, entre os países mais afectados por secas ao longo das últimas décadas estão, por exemplo, os EUA e o Brasil.

Alimentos como commodities

A Organização para a Alimentação e Agricultura da ONU (FAO) alerta para o facto de todos os anos se perderem cerca de 12 milhões de hectares de terras produtivas devido à seca e à desertificação, enquanto Banco Mundial calcula que até 2050 perto de 216 milhões de pessoas serão forçadas a migrar devido à seca, escassez de água, quebra da produtividade das colheitas, aumento do nível do mar e excesso de população. Nesse ano, as Nações Unidas estimam que sejam entre 4,8 e 5,7 mil milhões as pessoas que viverão em áreas com escassez de água pelo menos um mês por ano (actualmente são 3,6 mil milhões).

A par das catástrofes provocadas pela crise climática, há problemas estruturais no sistema alimentar mundial que poderiam ser minimizados, defendem os peritos do painel independente IPES-Food. Um dos principais é a excessiva dependência de importações que, no caso de alguns países, é dupla: são altamente dependentes de certos produtos (os cereais continuam a ser o melhor exemplo) e de muito poucos produtores para os fornecer. Isto significa que, se alguma coisa afectar esses produtores, os importadores ficam numa situação de total vulnerabilidade. É o que está a acontecer neste momento com vários países africanos.

Mas há também uma dependência mundial de um número cada vez mais pequeno de culturas. “Em 1995, o trigo, o arroz e o milho – que constituem apenas três das 7000 plantas consumidas pelos humanos – garantiam mais de 50% do consumo energético de origem vegetal.” Este aumento deve-se à crescente lógica de encarar os produtos alimentares como commodities que são negociadas a uma escala global e cujo preço depende das leis da oferta e da procura. Na prática, quando há escassez, como acontece agora, os preços sobem.




Se, por um lado, o mercado das commodities contribuiu para uma maior segurança alimentar “e, em alguns casos, para diversificar as dietas”, sublinha o relatório do IPES-Food, teve igualmente o efeito de “fragilizar as dietas tradicionais”. Muitos países em vias de desenvolvimento substituíram as culturas tradicionais por outras – o tabaco, por exemplo, terá “substituído os vegetais e as leguminosas no Bangladesh, assim como a mandioca, trigo painço e batata doce em vários países africanos” –, tornando-se não apenas dependentes do que importam mas também do que exportam, e que normalmente se restringe a uma monocultura, vulnerável simultaneamente às pragas e aos preços do mercado global.

O risco das monoculturas

O jornal britânico The Guardian pegou recentemente no exemplo da banana para mostrar o que significa, muitas vezes, esta aposta numa monocultura. De uma grande variedade de tipos de banana que existiam, foi-se seleccionando as melhores, até se chegar a uma considerada ideal, a Gros Michel. Acontece que esta variedade, em que todas as bananas são exactamente idênticas, ou seja, são clones umas das outras, foi afectada por um fungo que ameaçava dizimá-la.

A forma de contornar o problema foi desenvolver outra variedade, a Cavendish, que é hoje a mais generalizada em todo o mundo, e que é resistente a esse fungo. O problema é que a Cavendish não é tão resistente a outros tipos de fungos e, numa repetição da história, um novo fungo, chamado Panama 4, está agora a ameaçar a produção mundial de bananas, ajudado pelas alterações climáticas e o aumento das temperaturas. Este é apenas um caso, avisa o artigo, porque, “à medida que o planeta aquece, outras culturas serão afectadas”.
Apenas sete países, mais a União Europeia, são responsáveis por 90% das exportações de trigo do mundo e apenas quatro países por 87% das exportações de milho. Mais: são apenas quatro as empresas que controlam entre 80 e 90% do comércio global de cereais

A lição a tirar daqui, concluem os autores do artigo – e defendem muitos especialistas em produção alimentar –, é a de que sistemas apoiados numa maior variedade são mais resistentes. Isto aplica-se quer a um campo de cultivo agrícola, quer à alimentação de um país. Se a dieta de um determinado país africano for baseada numa série de alimentos diferentes, é possível, se um deles falhar, recorrer aos outros. Monoculturas alimentares são um risco. Com as populações habituadas a dietas à base de trigo em regiões que não conseguem produzi-lo, alguns países são agora 100% dependentes da importação de alimentos básicos, conclui o relatório do IPES-Food.

Passemos ao dado seguinte: o pequeno número de países exportadores. O relatório cita números que indicam que “apenas sete países, mais a União Europeia, são responsáveis por 90% das exportações de trigo do mundo e apenas quatro países por 87% das exportações de milho”. Mais: são apenas quatro as empresas que controlam entre 80 e 90% do comércio global de cereais (Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus, conhecidas como o grupo ABCD).

Esta concentração num número reduzido de grupos foi já denunciada num relatório da Oxfam, que a considera uma das causas da fome e miséria no mundo. O grupo ABCD, explica um outro artigo do The Guardian, argumenta por seu lado que é a escala enorme que lhes permite ser altamente eficazes a garantir alimento à população mundial, graças a um investimento grande em infra-estruturas de transporte e de armazenamento.

Da mesma forma, os grandes produtores planetários são também muito dependentes de fertilizantes que, mais uma vez, estão nas mãos de poucos fornecedores (com a Rússia e a Ucrânia no top cinco). O cenário repete-se: preços a subir, falta de fertilizantes agrícolas no mercado, restrições às exportações.

Financeirização do sistema

O relatório da IPES-Food aponta alguns caminhos para reduzir estas dependências: utilizar menos terra fértil para produzir biocombustíveis e voltar a usá-la para produzir alimentos; apostar menos em culturas destinadas à alimentação animal e mais nas destinadas à alimentação humana; e menos em culturas destinadas à exportação em grande escala e mais em alimentos tradicionalmente consumidos nesses países. Citando a Greenpeace, os autores do relatório afirmam que bastaria reduzir em 8% a produção de comida para animais, usando essa terra para alimentos destinados ao consumo humano, para compensar a perda das importações de cereais da Ucrânia.
No final de 2021, o número de especuladores nos mercados do trigo e do milho “cresceu de forma clara” na sequência do aumento de preços provocado pela pandemia – e “há indicadores de que estes investidores estão a fazer dinheiro”
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Outro factor agravante é a especulação em torno das commodities alimentares, na prática, a “financeirização do sistema alimentar”. Os mercados de cereais têm actualmente um funcionamento “opaco e disfuncional”, refere o relatório, que lembra que foi precisamente a “excessiva especulação” que levou à crise do preço dos alimentos a que o mundo assistiu em 2007-2008 e que as promessas de maior transparência na sequência desta nunca foram cumpridas.

Novamente, no final de 2021, o número de especuladores nos mercados do trigo e do milho “cresceu de forma clara” na sequência do aumento de preços provocado pela pandemia – e “há indicadores de que estes investidores estão a fazer dinheiro”.





A guerra na Ucrânia, lembram os peritos, está a provocar aquela que é a terceira crise alimentar nos últimos 15 anos. Isto aponta para a “necessidade de mudanças profundas e estruturais que atravessem os sistemas alimentares”. Por isso, o IPES-Food deixa cinco recomendações: garantir assistência financeira e perdão da dívida aos países mais vulneráveis; travar a especulação no mercado das commodities; criar reservas de cereais a nível regional e um esquema de ajuda alimentar que permita enfrentar crises prolongadas; diversificar a produção alimentar e os sistemas de comércio; reconstruir resiliência e cortar dependências prejudiciais através da diversificação e da agroecologia.

E, acima de tudo, evitar um erro que se vem repetindo sistematicamente – o de procurar soluções de curto prazo para resolver os problemas imediatos e continuar a ignorar que estamos perante uma crise estrutural que exige respostas mais profundas. Só encarando esta realidade, afirmam os peritos do IPES, há esperança de impedir a “próxima tempestade perfeita”.

A crise alimentar em números
8,4% foi quanto aumentou a fome no mundo em 2020, em consequência da pandemia de covid-19
811 milhões de pessoas sofrem de subnutrição
Mais de 50% dos agricultores do mundo vivem abaixo do nível de pobreza
Nos países mais pobres, as populações mais frágeis gastam 60% dos seus rendimentos em alimentação
3 variedades de plantas (trigo, arroz e milho) asseguram 50% da alimentação humana (existem 7 mil plantas comestíveis)
Se 25% da terra agrícola da União Europeia fosse usada para produção biológica, a UE conseguiria reduzir drasticamente as importações de fertilizantes à base de nitrogénio
A procura global pelos três principais tipos de fertilizantes (nitrogénio, fosfato e potássio) aumentou recentemente em 8,5%