10.5.23

O coração ainda bate. A liberdade de ser

Inês Meneses, crónica, in Público


Inês Meneses escreve sobre a liberdade individual e a condenação colectiva.


Impressiona-me a forma como a sociedade tende a domesticar o individualismo. As cabeças viram-se num movimento que traz o espanto condenatório e dizem: “Como é possível?” E a identidade de cada um estremece como se houvesse algo de errado em cada um dos que teimam em remar contra a maré. Aliás, não se rema contra, remamos para lados diferentes. Mas por que motivo as massas se importam? Por que razão um elemento dissonante abala a normalidade vigente? E sobre a normalidade poderia agora dizer muitas coisas. Normal seria podermos todos exercer a nossa liberdade. A liberdade de ser.

Há dias, na escola da minha filha, alguém que escapa aos padrões estéticos e sexuais, alguém que exerce a sua liberdade, foi insultado. Um amigo corajoso – devíamos ser todos nós, já que a liberdade impera – saiu em defesa do agredido. (Um insulto será sempre uma agressão, mesmo que as marcas não se vejam.) A cena acabou em violência física.

“Deixem as pessoas ser”, disse a minha filha quando chegou a casa. E eu comovi-me com essa noção tão clara do que é a liberdade.

Quando alguém diz que não gosta de praia, há desde logo um riso escarninho sobre quem não a frequenta. Eu gosto de praia, sobretudo sem as pessoas que escarneiam dos outros. Quando alguém se senta a uma mesa e diz que não vai comer determinado prato, a maioria dos presentes faz disso um banquete de humilhação. O lesado tem de explicar por que não come, como se pedisse desculpas ao mundo por não ter estômago que comporte aquilo que os outros lhe impingem. Quando alguém diz que não conduz (eu não conduzo), é como se fôssemos seres de outras galáxias. Lá, onde se pode andar a pé.

As pessoas sentem-se fortificadas quando atacam alguém na sua diferença, como se fosse uma doença. “De que é que sofres?” “Sofro de algo que desconheces.” Essa falsa ideia de que por sermos todos iguais e gostarmos todos do mesmo vamos ficar sempre a salvo é risível. Quantos dessa maioria não anularam vontades para pertencerem a um rebanho sem nome em que ninguém é insultado, mas em que à noite se sonha acordado com aquilo que não se concretizou?!

Quando soube do episódio na escola, fiquei a pensar no que leva alguém (a idade não justifica tudo) a insultar uma pessoa que passa em silêncio e deixa (no olhar de quem julga) um rasto de diferença. É isso que nos choca? A diferença magoa quem, para daí resultar o insulto, a calúnia, a agressão física?

Ouvir determinadas vozes amplificadas na nossa sociedade a gritar “não queremos cá gente diferente de nós a ficar com o que é nosso” é de uma agressividade sem nome. Sobretudo porque durante décadas fomos e somos nós a tentar a sorte noutros países. Fomos nós os "diferentes" por muitas razões.

Há quem morra por ser diferente. Há quem nunca venha a ter uma vida com dignidade por viver refém do olhar dos outros. E olhem que isto é válido para muitas coisas: para os amores que não se viveram, a profissão que não se seguiu, a sexualidade que, por medo, se reprimiu.

Deixem as pessoas ser. Deixem-nos escolher se vamos ficar em casa ou se não vamos a lado nenhum: nem praia, nem rio, nem Gulbenkian, nem Aliados. Deixem-nos ser aquilo que a nossa sexualidade mandar. Deixem-nos vestir a cor que quisermos, mesmo que vos choque. Deixem-nos não comer aquilo que vos apetece. Deixem-nos ver o que vocês evitam.

Deixem-nos ser, porque a liberdade é a possibilidade de escolha. Saímos do ventre das nossas mães para fazermos o nosso caminho.

Qualquer sociedade assustada com a dissonância é uma maioria sem gente maior.