15.6.23

O cérebro não pode ser um sótão atulhado até ao limite

Ana Stilwell e Isabel Stilwell, crónica, in Público

Talvez tenhamos de voltar a usar a lógica do analógico no digital, e só tirar uma (1) fotografia, reservando-a mesmo para um momento especial.

Querida Mãe,

É verdade que das suas duas filhas, não sou a que estudei neurociência, mas nem por isso vou deixar de lhe revelar o que descobri sobre o nosso cérebro!

Fundamentado em... absolutamente nada, para lá da minha experiência pessoal! Aqui vai: Sabe como toda a gente está sempre a tentar convencer-nos de que só usamos uma pequeníssima parcela da nossa gigantesca capacidade mental? E a dar-nos receitas para pôr a uso a que não usamos? Como se mais equivalesse a melhor? Pois bem, venho refutar essa teoria.

E se o nosso cérebro precisar de estar a apenas 10% para conseguir funcionar como deve ser? É que todos os dispositivos, e digo mesmo todos, funcionam pior se o “disco rígido” estiver cheio.

Se calhar, precisamos do espaço aparentemente inactivo, para conseguirmos funcionar melhor. Se calhar, precisamos de não estar ao máximo da nossa capacidade, para sermos capazes de usufruir do verdadeiro mistério que é o mundo à nossa volta.

Sempre que surge um primeiro dia de Verão, fico maravilhada, mas também surpreendida por me ter esquecido da sensação que me provoca. Como se alguém tivesse passado uma esponja sobre a sensação de calor, tal como quando está calor, não consigo realmente “sentir” como é o frio do Inverno.

Mas, se não fossem essas falhas de memória, como é que nos continuávamos a espantar pelo facto de o mundo, mudando todos os dias, voltar ciclicamente a ser o mesmo? O meu e-mail, o meu telemóvel, o meu computador, todos gritam "Memória quase cheia. O sistema pode não funcionar a 100%".

E é exactamente assim que me sinto. A apagar duas fotografias para poder ter mais espaço, durante um segundo... porque fica cheio de novo.

Talvez tenhamos de voltar a usar a lógica do analógico no digital, e só tirar uma (1) fotografia, reservando-a mesmo para um momento especial. E a usar da mesma parcimónia com tudo o resto na nossa vida, sem esta ânsia de chegar a tudo e a todos ao mesmo tempo.

Mãe, gosta da minha teoria?

Querida Ana,

Parece-me brilhante, e a avaliar pela dificuldade que sinto todas as noites a adormecer, com a cabeça a mil e os pensamentos a atropelarem-se uns aos outros, pressinto que deste um passo gigante na ciência. Não estranhes a falta de reconhecimento da Academia, porque geralmente só chega quando o génio já morreu há pelo menos um século.

Sinto exactamente a mesma necessidade de encontrar clareiras nesta vida de correria e de ter muito daquilo de que já temos demais, o que vai dos bens materiais, ao excesso de informação, consumida sem critério.

Ainda ontem estava a reparar em dois anúncios na televisão que são paradigmáticos desta loucura: um é de um comprimido que, diz a locução, nos permite comer e beber ao limite, porque basta uma pastilha daquelas e fica tudo a zeros — em lugar de dizer que, talvez, fosse melhor não ingerir mais do que o nosso corpo e cabeça aguenta. O segundo, de venda de roupa em segunda mão, com imagens de armários a deitar por fora, mas em que a moral da história é “despacha isto para poderes voltar a encher com mais”.

Por isso, obrigada Ana, por me lembrares que o cérebro não deve mesmo ser um sótão que atulhamos até ao limite, seja ele qual for. Porque tenho a certeza absoluta que tens razão: a criatividade e a imaginação precisam de espaço. Tanta conversa sobre saúde mental, mas se calhar é esta a primeira regra.

O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.