19.6.23

Portugal: o país onde uma licenciatura vale cada vez menos, falta talento qualificado e a classe que o forma é a mais envelhecida da Europa

  Cátia Mateus Jornalista, Carlos Esteves Jornalista infográfico, in Expresso


Em menos de uma década, o prémio salarial associado à licenciatura caiu para metade, o emprego tecnológico cresceu a um ritmo cinco vezes superior ao de outras áreas e a escassez de talento qualificado agravou-se, aponta o novo relatório da Fundação José Neves sobre qualificação, emprego e salários


Entre 2011 e 2022 o prémio salarial associado à formação superior caiu para quase metade em Portugal, passando de 51% para 27%. Por outras palavras, investir num curso superior era, no ano passado, menos compensador para um jovem até aos 34 anos, em matéria salarial, do que em 2011.

Acontece que nos últimos anos, as exigências de qualificação técnica e superior - nomeadamente em competências digitais e tecnológicas - dispararam, pressionando as empresas em matéria de contratação, indica o relatório anual da Fundação José Neves, “Estado da Nação sobre Educação, Emprego e Competências em Portugal 2023”, divulgado esta quinta-feira, a que o Expresso teve acesso.

A braços com um cenário de escassez de talento disponível e dificuldades de contratação nunca vistas, Portugal vive um momento decisivo, que obriga o país a repensar toda a sua estrutura de ensino para conseguir formar e requalificar profissionais com as competências adequadas.

Há, contudo, um problema de fundo: a classe docente portuguesa é a mais envelhecida da Europa e “um sistema educativo que não consegue atrair novos professores compromete o futuro dos alunos” e, consequentemente, dos profissionais, alerta Carlos Oliveira, presidente executivo da Fundação José Neves, em declarações ao Expresso.


O novo relatório faz uma análise à vitalidade do país em três áreas chave: o emprego, as competências e o sistema educativo. E, em todas elas, o último relatório da Fundação José Neves identifica lacunas e aponta soluções.

Ao Expresso, Carlos Oliveira fala numa necessidade em “melhorar as qualificações dos portugueses, alinhando-as com as necessidades das empresas e, sobretudo, com a velocidade da evolução tecnológica”. Mas admite que “este trabalho começa na escola” e que “o país não pode continuar a seguir um modelo educativo do século XVIII, com professores do século XX, para formar os profissionais do século XXI”.

Comecemos pelo emprego. Os indicadores disponíveis mostram que, apesar da instabilidade económica do último ano e dos efeitos económicos decorrentes do conflito militar na Ucrânia, o emprego nacional já recuperou os níveis anteriores à pandemia.

Contudo, no que toca aos salários, a análise da fundação é menos otimista. “Entre 2021 e 2022, apesar do aumento do salário nominal em 3,6%, o salário real caiu 4%, já que o aumento verificado não cobriu a subida da inflação, tendo-se registado uma perda do poder de compra”, sinaliza o relatório a que o Expresso teve acesso.

O impacto dessa perda foi transversal aos vários níveis de qualificação, abrangendo genericamente todos os trabalhadores. Contudo, os jovens qualificados sentiram-no de forma mais severa, com uma perda salarial real na ordem dos 6%. Esta degradação salarial é ainda acentuada por outro fator: a diminuição progressiva do prémio salarial associado à qualificação superior, que atingiu em 2022 um mínimo histórico.
QUALIFICAÇÃO SUPERIOR PESA MENOS NO SALÁRIO

Não é uma tendência recente, mas a perda foi particularmente expressiva no último ano. Desde 2011 que o prémio salarial associado à licenciatura está em queda. Quer isto dizer que a diferença salarial entre um jovem licenciado e outro com ensino secundário está a esbater-se. Se em 2011, um jovem adulto entre os 25 e os 34 anos, com qualificação ao nível do ensino superior, auferia, em média, um salário 51% superior ao de um jovem com o ensino secundário, em 2022 esse diferencial recuou para apenas 27%, um mínimo histórico.

“Isto não quer dizer que a educação superior esteja a perder a sua relevância”, nota o presidente da Fundação José Neves. O relatório mostra que mesmo perante uma redução do prémio salarial associado ao ensino superior, ter um “canudo” garante salários mais elevados. Além disso, vinca Carlos Oliveira, “a recuperação do emprego pós-pandemia foi total entre os jovens com o ensino superior, mas inferior entre os menos qualificados”. Neste grupo, a taxa de desemprego em 2022 ficou nos 18%, significativamente acima dos 13% apurados em 2019, no período pré-pandemia.
MERCADO DE TRABALHO MAIS QUALIFICADO E DIGITAL

Apesar da degradação salarial dos jovens mais qualificados, o mercado de trabalho em geral tornou-se, nos últimos anos, mais qualificado e digital, requerendo por isso maiores competências por parte dos profissionais. “Em 2022, 28% das competências pedidas eram digitais e 66% das ofertas de emprego anunciadas exigiam competências digitais, um valor muito superior aos 54% de 2019”, aponta o relatório.

A maioria das profissões aumentou os requisitos digitais e o sector da alta tecnologia continuou a crescer no país, respondendo já por 45% do emprego total. “A digitalização continua a crescer a um ritmo superior ao previsto para a década”, sinaliza Carlos Oliveira. E aponta para os dados: “continua a haver um enorme potencial por explorar, quer ao nível dos trabalhadores - quatro em cada dez estão em empregos que não utilizam tecnologias digitais ou que fazem delas uma utilização muito básica - quer ao nível das empresas que têm um nível de digitalização baixo”.
75% DOS ADULTOS MENOS QUALIFICADOS NÃO TÊM COMPETÊNCIAS DIGITAIS BÁSICAS

Um potencial que, para o presidente da Fundação José Neves, o país não pode desperdiçar, já que “empresas mais digitais são mais produtivas e pagam melhores salários”, realça. O nível de digitalização das empresas está positivamente associado a ganhos de produtividade na ordem dos 20% e a salários cerca de 3% superiores, conduzindo a uma maior competitividade das organizações e melhoria das condições salariais dos trabalhadores. Ainda assim, avança o relatório, “75% dos adultos menos qualificados não têm competências digitais básicas”.

“É preciso acelerar a formação dos portugueses para responder ao emprego que está a ser criado nas áreas tecnológicas”, explica Carlos Oliveira. Portugal continua na cauda da União Europeia na percentagem de adultos com baixa escolaridade. Em 2022, quase 40% dos adultos entre os 25 e os 64 anos tinham, no máximo o ensino básico, “um valor sem paralelo na União Europeia” - onde a média não ia além dos 20,5% e nos cinco países mais bem posicionados, este indicador não ia além dos 6,4% -, vinca o presidente da Fundação José Neves.

Melhorar as qualificações dos portugueses, diminuindo a população adulta com baixa escolaridade e aumentando a percentagem da população com qualificação superior, é uma das metas que a Fundação José Neves quer ver alcançadas até 2040. Mas não é a única. O peso dps sectores tecnológicos e intensivos em conhecimento no emprego deve aumentar para absorver a crescente qualificação da população e “é preciso reforçar o alinhamento da educação e formação com as necessidades do mercado de trabalho”.
“O QUE FUNCIONAVA MUITO BEM HÁ 200 ANOS, NÃO FUNCIONA AGORA”

E este ponto, em particular, preocupa Carlos Oliveira. “Formar jovens para um mercado de trabalho e para uma sociedade mais complexa e exigente, requer um sistema de ensino em que as tecnologias digitais, mais do que um objetivo, sejam um meio para potenciar uma aprendizagem e um ensino mais integrado e inovador”, explica.

E é esse, na opinião do presidente da Fundação José Neves, um dos “enormes desafios que o sistema educativo enfrenta”. As competências, diz, “fazem a diferença" e apesar da notável evolução da qualificação das gerações mais jovens, “é preciso uma nova visão para a educação do futuro”, sinaliza Carlos Oliveira, acrescentando que ”colocamos os nossos filhos cinco a seis horas diárias na escola, fechados em salas. O que funcionava muito bem há 200 anos não funciona agora".

É necessária, defende, "uma reflexão profunda sobre a educação, o que se ensina e como se ensina, o que se aprende, como se organiza o sistema", já que “o sucesso dos alunos como profissionais do futuro depende de a escola e os professores estarem à altura dos desafios atuais”.

De acordo com o relatório da Fundação José Neves, há cada vez menos professores e menos jovens a escolher a carreira docente. “Portugal é o país da União Europeia com a classe docente mais envelhecida e, apesar de o número de inscritos em licenciaturas ter aumentado 8% entre 2013/2014 e 2020/2021, a tendência na formação de professores foi a inversa, com uma queda de 18%”. Nos mestrados a redução chega a 22%.

“Esta escassez de professores não pode ser dissociada das condições de trabalho e progressão na carreira, que têm tornado a profissão pouco atrativa e resultam em elevados níveis de insatisfação profissional”, nota Carlos Oliveira.

Os dados mostram que, no ano letivo de 20/21, um em cada cinco professores portugueses (19%) era contratado - não estava ainda vinculado à carreira docente - e tinha um salário bruto abaixo dos 1500 euros, já considerando o subsídio de refeição.

Por outro lado, o salário de um professor em início de carreira era inferior ao de outros trabalhadores com formação equivalente nas áreas CTEM, da Saúde e Direito. Um fosso salarial que se agrava com o passar dos anos, devido às dificuldades de progressão na carreira.

Um estudo recente mostra que cerca de metade dos pais portugueses desencorajaria os filhos a seguirem a carreira docente. O valor é o mais elevado entre os países da União Europeia e para o presidente da Fundação José Neves, é crítico alterar esta realidade: “um sistema educativo que não consegue atrair novos professores compromete o futuro dos alunos e a competitividade do país”, realça.