19.6.23

Julian Thayer: “Temos de ter compaixão” — esse será o nosso “segredo para sobreviver”

Filipa Almeida Mendes (texto) e Rui Gaudêncio (fotografia), in Público


Especialista em psicofisiologia, com mais de 450 artigos publicados, Julian Thayer explica-nos qual a relação da compaixão com o nervo vago e a variabilidade da frequência cardíaca.


Compaixão: não será certamente difícil recordar a última vez que ouvimos a palavra. Mas quais são as bases fisiológicas da compaixão? O que sabe a ciência sobre este ramo da saúde mental?

Julian Thayer, professor na Universidade da Califórnia e na Universidade Estadual do Ohio (EUA), é especialista em fisiologia humana da compaixão. Várias vezes premiado pelas contribuições no campo da medicina psicossomática, foi também identificado pelo site Web of Science como um “investigador altamente citado”, somando mais de 450 artigos científicos publicados.


Em entrevista ao PÚBLICO, no âmbito de uma conferência a propósito das comemorações do 10.º aniversário do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, o especialista em psicofisiologia fala sobre a relação da compaixão com o sistema nervoso autónomo, especificamente com o nervo vago (o maior nervo craniano), e com a variabilidade da frequência cardíaca.

Como é que surgiu este seu interesse pela fisiologia humana da compaixão?

Estamos a viver tempos conturbados e penso que muitas pessoas têm a ideia de que “a sobrevivência do mais apto” e a agressividade podem ser a melhor forma de encarar a vida. Mas, de facto, estudos recentes sugerem que temos de ter compaixão e que esse será o nosso segredo para sobreviver.

Qual é a relação entre o nervo vago e a variabilidade da frequência cardíaca?

A palavra “vago” deriva da mesma palavra que “errante”. Portanto, é o “nervo errante” e pode pensar-se nele como o regulador de todo o organismo.


Pode dizer-se que a actividade do nervo vago está associada à segurança e ao bem-estarJulian Thayer

No que diz respeito ao coração, em particular, quando inspiramos, o nosso ritmo cardíaco tende a aumentar e, quando expiramos, tende a diminuir — chama-se a isto arritmia sinusal respiratória e representa um bloqueio da actividade do nervo vago. Quando o nervo vago está activo, o coração abranda e, quando está menos activo, o coração acelera.

O nervo vago tem um papel importante a desempenhar na compaixão?

Sem dúvida. Por exemplo, para adormecermos à noite temos de nos sentir seguros e a actividade do nervo vago aumenta à noite (quando o organismo se sente seguro). Por isso, é por vezes chamado o sistema de descanso e digestão porque para comer e descansar temos de nos sentir seguros. Por isso, pode dizer-se que a actividade do nervo vago está associada à segurança e ao bem-estar.


A variabilidade da frequência cardíaca é mais elevada nas pessoas com melhores relações?
Sim, tende a ser mais elevada nas pessoas com melhores relações. Mas se estivermos a tentar gerir e regular as nossas relações, a actividade do nervo vago também será mais elevada.

Por exemplo, juntamente com o meu colega Tim Smith, da Universidade do Utah, fizemos um estudo em que levámos pessoas casadas para o laboratório e as pusemos a discutir tópicos positivos, negativos e sobre um problema na sua relação. Em resposta à discussão deste problema na relação, a variabilidade da frequência cardíaca nas mulheres aumentou, o que demonstrou estar associado à regulação das emoções negativas do parceiro. Ou seja, a variabilidade da frequência cardíaca pode aumentar quando nos sentimos bem, mas também quando estamos a regular activamente as emoções.


Historicamente, o nervo vago já era conhecido. No livro A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Charles Darwin fala sobre o trabalho do fisiologista francês Claude Bernard e diz que o coração e o cérebro estão ligados através do nervo vago. Depois, durante mais de 100 anos, não se fez muita investigação sobre o nervo vago — em parte, porque era um pouco difícil de estudar.

Por volta do final da década de 1970, os investigadores descobriram que, se estudássemos a variabilidade da frequência cardíaca do feto, poderíamos saber quando o feto estava em sofrimento e quando fazer uma cesariana e esse tipo de coisas. Foi nessa altura que começaram os estudos modernos sobre a variabilidade da frequência cardíaca e, ao longo desse período de tempo relativamente curto, foram efectuados vários avanços metodológicos.

Penso que uma das descobertas recentes mais importantes são os estudos que envolvem a estimulação eléctrica do nervo vago e o meu colega Vaughan Macefield​, na Austrália, conseguiu agora registar directamente a actividade do nervo vago em seres humanos vivos. A variabilidade da frequência cardíaca é, obviamente, uma medida indirecta, mas o Vaughan​ conseguiu colocar um pequeno eléctrodo no pescoço e estudar e registar directamente a actividade do nervo vago. Penso que é um grande avanço.

Quais são as bases fisiológicas da compaixão?
Aquela ideia da “sobrevivência do mais apto” e a postura mais agressiva podem não ser verdadeiras e uma das maneiras pelas quais as pessoas têm olhado para isso é em termos do que é chamado a “teoria da autodomesticação” — a ideia de que os humanos anatomicamente modernos são autodomesticados.

Um colega meu, na Suécia, Mats Fredricksson, e alguns outros, fizeram um estudo sobre coelhos domesticados e selvagens e descobriram que os coelhos selvagens eram mais stressados e, de certa forma, mostravam-se mais ansiosos em relação a uma ameaça. Porém, quando estes animais foram domesticados, as áreas do seu cérebro associadas à segurança aumentaram e as áreas associadas à ameaça diminuíram — portanto, o seu córtex pré-frontal aumentou e a amígdala diminuiu. Além disso, esses animais domesticados também tinham uma resposta ao medo mais pequena ou atenuada.

O livro Sobrevivência do Mais Amigável: Compreender as Nossas Origens e Redescobrir a Nossa Humanidade Comum [de Brian Hare e Vanessa Woods] sugere que este tipo de interacção entre pessoas requer que nos sintamos seguros. A ideia é que quando os humanos anatomicamente modernos começaram a interagir com os neandertais, para que não se matassem uns aos outros, tinham de ter alguma base de compaixão, associação e representação.Até hoje, continua a ser um mistério para mim como é que Darwin e Claude Bernard sabiam, em meados de 1800, que o coração e o cérebro estavam ligados pelo nervo vago
Julian Thayer

Como define a compaixão?
Um investigador chamado Paul Gilbert, do Reino Unido, fala da compaixão em termos de “uma sensibilidade ao sofrimento em si e nos outros e um compromisso para aliviar o sofrimento”. Eu seguiria provavelmente a mesma definição.

Portanto, envolve duas coisas. Primeiro, temos de reconhecer o sofrimento e, em segundo lugar, temos de fazer um esforço para o tentar aliviar. Se apenas reconhecermos o sofrimento, isso não é suficiente e se apenas tentarmos ajudar aleatoriamente, isso também pode não ser suficiente.

O que pode influenciar a compaixão?
Alguns estudos sugerem que, quando nos sentimos ameaçados, temos menos compaixão. Isto está relacionado com a região pré-frontal do cérebro e este circuito de ameaça na amígdala. Ou seja, quando a actividade pré-frontal é maior, sentimo-nos mais seguros. Com o stress, a actividade do córtex pré-frontal diminui e a actividade da amígdala aumenta — o que significa que o stress pode ter impacto na compaixão, alterando o circuito cerebral.

E a idade?
Participei num estudo com a minha colega Mara Mather, da Universidade do Sul da Califórnia, que analisou a conectividade destas duas regiões cerebrais [amígdala e região pré-frontal] e a sua relação com a variabilidade do ritmo cardíaco e descobrimos que, tanto em jovens como em idosos, a correlação era mais ou menos idêntica. Por isso, é possível ter, naturalmente, uma grande compaixão (talvez até mais) quando se envelhece.

Poderemos dizer que há algo de involuntário na compaixão?
Sim. Nós não pensamos em muitas destas regulações emocionais que fazemos. É tudo mais ou menos automático. Por isso, aquilo a que chamamos “regulação emocional implícita” é, na minha opinião, a principal forma de regulação das emoções em que todos nós nos envolvemos de forma mais ou menos inconsciente e a toda a hora.

Qual é o papel da oxitocina em tudo isto?
Publicámos um estudo, há alguns anos, do qual fez parte um grupo internacional de investigadores, em que analisámos o gene da oxitocina e descobrimos que as pessoas que tinham um determinado genótipo apresentavam uma maior variabilidade da frequência cardíaca e que o apoio social era mais eficaz para as pessoas com este polimorfismo genético específico.

Há alguma controvérsia sobre a administração de oxitocina exógena às pessoas (através de um spray nasal ou algo do género). Mas sabemos que pelo menos a oxitocina endógena está associada a alguns neurónios no cérebro, os neurónios oxitocinérgicos, que regulam o coração e a função cardíaca, particularmente durante o stress. Isto sugere que ter apoio social, particularmente durante um período de stress, pode activar estes neurónios no cérebro e, por conseguinte, levar a uma fisiologia mais tranquila.

Qual é a relação entre a compaixão, o perdão e a culpa?
Há alguns estudos que sugerem que as pessoas com maior variabilidade da frequência cardíaca têm maior tendência para perdoar. Portanto, mais uma vez, o nervo vago está envolvido porque temos de nos sentir seguros e confiantes em nós próprios e no nosso próprio bem-estar para sermos capazes de perdoar a outra pessoa.

Penso que funciona mais ou menos nos dois sentidos, ou seja, o nervo vago está envolvido na capacidade de perdoar os outros indivíduos e, quando os perdoamos, penso que isso também aumenta a actividade do nervo vago.

Como descreveria a relação entre o coração e o cérebro? Qual deles comanda o outro?
Fizemos alguns estudos, ao longo dos anos, sobre a relação entre a actividade do coração e a actividade do cérebro e tentámos ver qual delas vem primeiro.
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