Carmo Afonso, opinião, in Público online
A vinda deste Papa a Lisboa deveria ser uma boa notícia para quem vive em tendas nas ruas. Mas desenganem-se. Estão destinados a ser obliterados do espaço público e agora com hora marcada.
Aproxima-se a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e parece que tudo o que tem que ver com o evento tem o potencial de ser notícia e não por boas razões. Existe animosidade em relação à sua realização e isto é um facto. A confusão entre o que diz respeito à Igreja mas que acaba por ser assumido pelo Estado não é pacífica. Os custos astronómicos que têm vindo a público também não ajudam e o transtorno que se antecipa na vida das pessoas também não.
Já aqui escrevi em defesa do cristianismo e da sua importância histórica enquanto legado marcado pela defesa do coletivo e dos mais fracos num mundo impregnado de visões políticas individualistas e de correntes espirituais irritantes e adaptadas a todos os gostos. Digo mais: a doutrina cristã é inultrapassável. A mensagem que é atribuída a Jesus Cristo no Novo Testamento é absolutamente digna de ser difundida. O bem comum, a partilha e a distribuição da riqueza são a base dos ensinamentos de Cristo. E terá passado à prática. Fez-se acompanhar dos mais pobres, dos leprosos, de uma mulher que foi prostituta, e deixou estipulado que seria difícil aos ricos entrar no reino de Deus. Também expulsou comerciantes das imediações de um templo e não terá sido macio nessa diligência. É uma história, acredita nela quem quer ou consegue, mas temos de reconhecer que é uma boa história.
Alguém disse que um dos grandes problemas da humanidade é a má interpretação. Quem o disse estava carregado de razão. E o Vaticano tem sido, ao longo dos séculos, um grande exemplo de má interpretação de um texto. Não perceberam nada. Mas justiça deve ser feita e deve reconhecer-se que o Papa Francisco é a exceção. Nunca um Papa pareceu tão alinhado com a doutrina inicial e nunca a Igreja tinha feito um esforço tão assinalável de se aproximar do progressismo. A par desse esforço, há o de retomar a ligação aos mais desprotegidos, ou seja, aos mais pobres.
Existem duas Igrejas: a do Papa Francisco e uma velha Igreja bafienta e conservadora. A do Papa Francisco terá as suas falhas, mas a outra é insuportável. Neste período de preparação da JMJ ficou bem à vista qual dessas correntes da Igreja prevalece em Portugal.
A fome costuma juntar-se com a vontade de comer e em Lisboa foi assim. Este executivo camarário tem demonstrado um perfeito entendimento, e cumplicidade, com esta lógica obsoleta. O último caso é o tratamento que está a ser dado às pessoas sem-abrigo.
A grande virtude deste executivo é a gestão da sua imagem. Priorizam a estratégia de comunicação em relação ao trabalho camarário. Repara quem quiser observar
Já se sabia que a política do executivo em relação a estas pessoas é a de as retirar do centro da cidade e deslocá-las para albergues localizados em bairros sociais, como o Bairro Bensaúde. A novidade aqui é a pressa em retirar estas pessoas das ruas a tempo da JMJ. Isto está a ser feito em colaboração com organizações católicas como a “Comunidade Vida e Paz”. É isso que diz um comunicado desta instituição, que é público. As pessoas sem-abrigo foram informadas de uma “ação concentrada na Avenida Almirante Reis e na Rua Regueirão dos Anjos que visa uma limpeza das tendas existentes e demais pertences”. O comunicado esclarece ainda que isto é feito no âmbito do protocolo celebrado com a CML. Muitas pessoas sem-abrigo relatam o dia 30 de julho como sendo a data limite que lhes foi dada para, “de livre vontade”, procederem a essa remoção.
A grande virtude deste executivo é a gestão da sua imagem. Priorizam a estratégia de comunicação em relação ao trabalho camarário. Repara quem quiser observar. Um talento declarado para se escaparem entre os pingos da chuva. É o que está a acontecer em relação à situação das pessoas sem-abrigo. Já sacudiram a água do capote e tentam distanciar-se daquilo que é da sua responsabilidade, deixando a “Comunidade Vida e Paz” e outras organizações católicas a justificarem-se sozinhas por esforços que fizeram em concertação com a CML.
A vinda deste Papa a Lisboa deveria ser uma boa notícia para quem vive em tendas nas ruas. Seria de esperar que, como fez na Hungria e no próprio Vaticano, lhes desse destaque e visibilidade. Mas desenganem-se. Estão destinados a ser obliterados do espaço público e agora com hora marcada. Se deixarem de os ver, acreditam que não existem.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico