Reportagem Estado da Nação O Norte tem 54% da indústria transformadora e representa 37% da exportação de bens. Mas tem 3,6 milhões de habitantes com o rendimento mais baixo do país. Como mudar?
A região Norte é a mais exportadora do país. Mas medir o pulso ao estado da Nação a partir desse retrato é esquecer que o Norte também é a região mais pobre do país. O que está a falhar?
Paula, 47 anos, gaspeadeira, Santa Maria da Feira. Trabalha há 32 anos na indústria do calçado, mas há um mês ficou no desemprego. "A meu ver, o que falha é que as empresas tiram o lucro todo para elas. Estávamos a fazer sapatos que chegam a ser vendidos por 800 euros. Isso é o que cada um de nós ganhava de salário num mês."
O preço do sapato na loja não reflecte necessariamente a receita da empresa que o produz, contrapomos. "Mas a empresa ganha mais do que aquilo que nos paga", responde Paula, certa de que a riqueza gerada pelos trabalhadores "é mal distribuída".
Paula ganhava 914 euros ilíquidos. Feitos os descontos, levava para casa "800 e pouco". Quase metade (375) ia logo para a renda da casa, onde vive com duas filhas (17 e 15 anos, ambas estudantes). "Ao dia 6 ou 7 de cada mês começava a contar os dias até ao fim do mês."
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Agora recebe 660 euros de subsídio de desemprego. A remuneração média mensal na indústria do calçado é de 843 euros, diz o Ministério do Trabalho (Quadros de Pessoal, 2021). "Não tenho qualquer incentivo para ficar nesta situação. Não há subsídio de férias, nem 13.º mês. O apoio do Governo ao IVA não faz qualquer diferença. E estranhamente não tive apoio à renda, apesar da situação em que já me encontrava, com duas filhas a meu cargo", conta.
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"Já sei que os meus 32 anos de experiência não vão valer nada. Quando me chamarem, vão-me propor o salário mínimo. Para quem ganhava 914 euros, não é nada motivador. Vão querer pagar-me o que se paga a um aprendiz. Não é este o futuro que eu desejo para as minhas filhas."
Exportações sem valor suficiente
Estávamos com Paula no distrito de Aveiro, que pertence à região Centro, mas a Feira integra a Área Metropolitana no Porto e faz parte do Norte. As linhas administrativas no papel não obedecem a régua e esquadro, tal como a resposta a certas perguntas.
O que dirão os empresários perante a mesma questão. Por que razão a região mais exportadora e industrializada é também a mais pobre, senhor Albano Miguel Fernandes, da AMF Shoes, em Guimarães?
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Norte com 87% da média nacional
Vamos às estatísticas: segundo o INE, o Norte representa 37% das exportações nacionais de bens, sendo a região líder. A única que se aproxima é a Área Metropolitana de Lisboa (AML), com 33%.
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Em percentagem, o rendimento nominal a Norte é apenas 87% da média nacional.
A disparidade é notória mesmo quando se expressa o mesmo indicador em paridade de poder de compra. No Norte, o rendimento é de 21.200 (e continua a ser o mais baixo do país), enquanto na AML é de 31.100, diz o Eurostat.
"A pergunta é: como aumentamos os salários dos portugueses?" José Teixeira, presidente do grupo DST, de Braga, está a falar há cerca três minutos. Até chegar à questão que elegeu como crucial, o gestor invocou "o novo iluminismo que a Europa precisa" e que "tem de ser agarrado" porque pressupõe "outro modo industrial, social, de relações dos trabalhadores com os accionistas, de usar recursos".
"Há um trabalho cultural imenso para fazer, numa dimensão que é diminuir a disparidade entre pobreza e riqueza (...). E o ponto que corresponde ao início deste novelo é uma pergunta: como é que aumentamos os salários dos portugueses?"
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Mas no ar ainda havia um eco vindo de Sintra, onde a presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, deixara na véspera uma mensagem que os jovens devem ter considerado "incompreensível".
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"Depois de ouvirmos as pessoas que governam os bancos centrais a dizerem que há aqui uma espiral inflacionista que pode derivar do aumento dos salários, os jovens estão a dizer que não percebem nada disto. E por isso a pergunta legitima-se cada vez mais: como aumentamos os salários em Portugal? Todas as outras coisas são importantes, mas tem de haver dinheiro para as contas no fim do mês. Quando temos um salário [mínimo] de 760 euros e temos um T2 que, em Braga, já não se aluga a menos de 600 euros, como é que se resolve? Qual é o papel da economia, das empresas e dos trabalhadores? Para aumentar salários precisamos de aumentar o valor do que fazemos. E para isso precisamos deste tipo de ecossistema, que se centra no conhecimento."
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Exemplos recentes ilustram bem esse esforço, que tem sido apoiado por fundos europeus. O calçado, por exemplo, vai investir 140 milhões de euros para "reinventar a fábrica". O têxtil/vestuário tem alargado fronteiras e mercados com novos produtos, materiais, processos e serviços. Mostrou rapidez e génio quando rapidamente se adaptou à covid, respondeu em força com a reabertura pós-pandemia. E continuará a fazê-lo com os projectos na área da bioeconomia, que tem apoio do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), embora nesta altura se preocupe com oito meses consecutivos de quebra homóloga nas exportações.
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Mudar a "malha mental"
Quem há 30 anos viajasse na EN206, entre as freguesias de Joane, Pousada de Saramagos e Vermoim, e hoje acordasse de um sono profundo ao fim de três décadas, provavelmente estranharia a paisagem naqueles quilómetros a que muitos chamaram "a recta da Riopele".
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Centralismo, problema antigo
António Cunha, líder da CCDR-N, aponta o óbvio: não há uma explicação única para que a força da indústria do Norte conviva com a fraqueza do rendimento da sua população. "Nem há uma bala de prata", avisa.
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Exemplos? "O centralismo tem 500 anos! O país cresce 2,3% porque o Norte cresce 2,8%. Na inovação, a região tem sofrido com decisões descontextualizadas, projectos transformadores que não foram apoiados e deveriam ter sido. O centro de I&D da empresa ZF, que fabrica airbags em Ponte de Lima e Vila Nova da Cerveira, que seria muito bom para a criação de emprego de alto nível nessa região; o projecto da Continental Advanced Antenna em Vila Real tardou imenso em ser apoiado; as dificuldades dos projectos entre a Bosch e a Universidade do Minho, que transformaram Braga, têm tido, para serem reconhecidos como de grande mérito, porque as autoridades acham que são projectos megalómanos e que não há capacidade de os realizar a Norte com essa dimensão. A realidade desmente todos os dias isso!"