7.7.23

POBREZA ENERGÉTICA: ENERGIA E (DES)CONFORTO DO SETOR DOMÉSTICO

Posted by Isabel Sarmento, Opinião/Análise, in Edifícios e Energia


Artigo publicado originalmente na edição de Março/Abril de 2023 da Edifícios e Energia

A pobreza energética dá uma dimensão da “não-capacidade” das famílias para manterem a sua casa adequadamente aquecida. Nunca o tema, como hoje, teve a importância devida. Infelizmente, todos os anos, em Portugal, os meios de comunicação social noticiam que, devido a ocorrências relacionadas com chaminés, lareiras e braseiras, morrem pessoas numa tentativa de sobreviver ao frio que se faz sentir no interior das suas habitações. Vários fatores contribuem para esta dramática situação:

• Fraco desempenho térmico e energético das habitações;

• Baixo rendimento das famílias;

• Elevado custo da energia;

• Desigualdade no acesso à energia;

• Baixa literacia energética.

Ao estar, agora e bem, a pobreza energética na ordem do dia, parece-me interessante olhar para alguns indicadores, a partir dos dados que são divulgados e que nos podem fazer refletir sobre o muito que há a fazer para a mitigação do problema.

A vertente social da sustentabilidade pressupõe assegurar, ou pelo menos melhorar, a qualidade de vida das populações. E melhorar a qualidade de vida das pessoas é, também, garantir-lhes conforto e que esta melhoria seja feita em segurança.




Figura 1 – População portuguesa que vive em situação de pobreza energética e outros. Fonte: Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2021-2050.



A Agência Internacional de Energia estima que cerca de dois mil milhões de pessoas em todo o mundo vivem em situação de pobreza energética, sendo que, na União Europeia, esse valor varia entre 50 e 125 milhões de pessoas. Isto é, entre 11 % e 28 % dos europeus vivem em pobreza energética.

Já em Portugal, estima-se que haja entre 1,9 a três milhões de pessoas em pobreza energética, ainda que em diferentes patamares (Figura 1). Daí resulta que, pelo menos, entre 20 a 30 % dos portugueses vivem em situação de desconforto, o que revela a importância da Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2021-2050, ao estabelecer objetivos e estratégias com vista a mitigar a atual realidade.

A Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2021-2050 assenta em:

• reforço da eficiência energética das habitações;

• promoção de mecanismos de proteção e apoio ao consumidor;

• reforço das dinâmicas de informação;

• promoção de e apoio a projetos piloto com caráter inovador e à adoção de novas tecnologias.

O reforço da eficiência energética das habitações pressupõe, desde logo, a melhoria da qualidade térmica da envolvente do parque residencial, que, de um modo geral, é antigo e de fraca qualidade térmica. Tendo por base o Inquérito ao Consumo de Energia no Sector Doméstico (ICESD 2020), realizado pelo Instituto Nacional de Estatística, conclui-se que (Figura 2):

• 55 % do parque construído, correspondente a 290 km² de habitação, não foi objeto de qualquer requisito térmico à sua envolvente, já que foi construído antes da publicação do primeiro RCCTE [Regulamento das Características de Comportamento Térmico dos Edifícios – Decreto de Lei n.º 40/1990, de 6 de Fevereiro];

• 100 % do parque construído, equivalente a 529 km² de habitação, não cumprirá com o requisito NZEB [edifícios de habitação de necessidades quase nulas de energia], um dos objetivos da Estratégia de Longo Prazo de Renovação de Edifícios (ELPRE).

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) destina à promoção da eficiência energética de edifícios, nos próximos cinco anos, 300 milhões de euros (Investimento TC-C13-i01). Se, em termos absolutos, este valor parece muito, já em termos relativos resulta em:

• 1,94 euros /m², para 53,6 % de área do parque construído até 1990, provavelmente, aquele que está afeto aos três milhões da população com algum grau de pobreza energética;

• 1,65 euros /m², considerando 50 % da área do edificado habitacional prevista a ser renovada até 2030 no âmbito da ELPRE;

• 0,62 euros /m², tomando em consideração o parque construído até 2005; ou

• 0,57 euros /m², tomando em consideração o parque construído até 2021 (até esta data, não há NZEB).




Figura 2 – Estado do parque edificado português. Fonte: Dados ICESD 2020 (adaptação)


Analisando estas possibilidades, o valor do PRR para a eficiência energética de edifícios parece, de todo, insuficiente, em qualquer dos cenários! Ainda mais, tomando em conta, apenas, a reabilitação da envolvente. Mas a eficiência energética das habitações pressupõe, também, reabilitar ou, até, dotar as habitações de sistemas de aquecimento energeticamente eficientes e em linha com a tão ambicionada descarbonização dos edifícios.

Apesar de o aquecimento ambiente estar presente na quase totalidade das habitações portuguesas, dificilmente tal significa estar em conforto térmico, como, facilmente, se pode depreender pelo tipo de sistemas em aquecimento que equipam os alojamentos (Figura 3).

Efetivamente, apenas 16,6 % dos alojamentos terão, à partida, garantia de conforto em todos os seus espaços, ao serem dotados de um sistema de aquecimento centralizado. Os demais 83 % são caraterizados por possuírem sistemas individuais que garantirão apenas algum conforto no espaço onde se localizam. Alojamentos haverá que nada terão e o arrefecimento ambiente, quando assegurado, é 60 % promovido por ventoinhas.

Ainda de acordo com os dados ICDES 2020, 81,2 % da energia para aquecimento é biomassa, da qual 92 % é lenha e apenas 18,8 % da energia para aquecimento tem origem fóssil. Disto resulta que 75 % do aquecimento ambiente dos alojamentos em Portugal é assegurado por lenha (o que nos leva ao início deste texto) e apenas 2,7 % do aquecimento ambiente é assegurado por gás natural.

Por seu lado, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica proposto para Portugal, com vista à transição energética, tem como meta atingir essa neutralidade em 2050. No caso do setor residencial, aquela neutralidade tem como objetivos:

• a eletrificação dos sistemas de aquecimento e arrefecimento;

• a redução do consumo energético;

• a redução das emissões de gases com efeito de estufa.




Figura 3 – Alojamentos em Portugal com sistema de aquecimento ambiente por tipo. Fonte: Dados ICESD 2020.

Há muito a reabilitar no setor doméstico: não só na envolvente dos edifícios, mas, também, ao nível dos sistemas de aquecimento e arrefecimento ambiente que os equipam ou que os alojamentos, maioritariamente, não detêm. Pelo que dúvidas quanto à suficiência do valor estabelecido à promoção da eficiência energética de edifícios residenciais, tomando em consideração apenas a sua envolvente, se existirem, desvanecem quando avaliamos as necessidades de intervenção ao nível dos sistemas de aquecimento ambiente – já para não falar dos sistemas de produção de água quente sanitária!

Mas, tomando como fundamental a reabilitação energética dos edifícios, importa perceber o peso do custo da energia no rendimento das famílias. Tendo, ainda, por base o ICESD 2020, a despesa média anual em energia por alojamento ascendia, a preços de 2020, a 1 080 euros, o que, em função da atividade profissional, rondava entre 1 e 1,4 vezes o rendimento mensal de um trabalhador por conta de outrem, valores que, necessariamente, já foram ultrapassados, com a atualização em alta dos preços da energia e a estagnação dos ordenados. Tal representa um elevado esforço financeiro àqueles que poucos recursos têm.

“Em suma, não bastará reabilitar energeticamente o edificado residencial. Há que garantir acesso às melhores fontes de energia e a custos comportáveis para as famílias. As famílias portuguesas “vivem em ausência de conforto”, de facto, e não só nas suas casas!”

Dessa despesa, 25 % (ICESD 2020) é associada ao aquecimento ambiente, ainda que, como já concluído, o conforto não seja assegurado será, antes, para garantir um mínimo que permita a sobrevivência. Ora, a ser assim, o reabilitar só por si, ainda que reduza a despesa energética para uma situação de conforto pleno e melhore significativamente o conforto das habitações, poderá não ser suficiente. A realidade é que a fatura energética dos agregados familiares terá tendência a aumentar se se pretender o pleno conforto, o que será incomportável.

A desigualdade no acesso a fontes de energia é, também, um problema, já que apenas 27,9 % dos alojamentos têm acesso a gás natural, enquanto 99,7 % dos alojamentos têm acesso a eletricidade.

Em suma, não bastará reabilitar energeticamente o edificado residencial. Há que garantir acesso às melhores fontes de energia e a custos comportáveis para as famílias. As famílias portuguesas “vivem em ausência de conforto”, de facto, e não só nas suas casas!

A realidade do desconforto em Portugal é bem mais alargada. É recorrente lermos manchetes a referirem que “crianças levam mantas para a escola para enganar o frio” (Lusa, 22 de janeiro de 2022) ou “julgamentos a decorrer ao frio em tribunal (…)” (Jornal da tarde, RTP, 15 de janeiro de 2023). Ou seja, o próprio Estado, a quem cabe a responsabilidade social de assegurar a qualidade de vida das populações, também não garante o conforto em muitos dos seus edifícios.


As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.