29.7.07

O bispo desceu à cidade

Manuel Vitorino, Artur Machado, in Jornal de Notícias

Foi um casario a cair aos bocados, com gente idosa e sem esperança em dias melhores que, o bispo do Porto encontrou, ontem, ao percorrer as ruelas do Centro Histórico. "Vejo com muita tristeza o facto da cidade estar deserta. Já reparou que tal acontece onde existe mais património?" referiu D. Manuel Clemente. Inquieto, o alto dignitário da Igreja prometeu alertar as consciências dos governantes.

Ainda a manhã ia a meio e junto ao Terreiro da Sé, onde a cidade nasceu e cresceu, chegavam centenas de turistas deslumbrados pela paisagem. Tiravam fotos à estátua de Vímara Peres, aos altares da Sé Catedral, às clarabóias da Calçada de Vandoma, à antiga Viela dos Gatos, onde Alexandre Herculano viveu. Por perto, no Paço Episcopal, o bispo do Porto preparou-se para uma viagem espiritual e cultural à cidade medieval, guiada pelo investigador Germano Silva. "Foi uma promessa feita desde o dia em que assumi a diocese. Também gosto de saber o chão que piso".

Por entre descobertas e fotos antigas, o prelado ficou a saber onde esteve o edifício do jornal "A Palavra", dirigido pelo conde de Samodães e mostrou particular curiosidade em observar a casa de janelas góticas, construída na primeira metade do séc. XIV, no Beco dos Redemoinhos, paredes meias com a galilé da Sé atribuída a Nicolau Nasoni "Fantástico", elogiou.

Na passagem, observou as ruínas da primitiva muralha, desceu a Rua de D. Hugo (bispo do séc. XII) e entrou na Rua de S. Sebastião e aqui, o enorme edifício da "Casa dos 24", desenhado pelo arquitecto Fernando Távora, suscitou críticas. "Não sei muito bem a sua utilidade", desabafou o bispo. "É um mamarracho. Com o dinheiro gasto aqui, mais valia terem arranjado as casas. Estão quase todas podres", respondeu a moradora Hermínia Ferrão, perante o sorriso cúmplice de D. Manuel Clemente.

Na conversa à volta da história portuense, investigador e prelado partilharam conhecimentos e saberes. Recordaram S. Pantaleão - "que foi padroeiro do Porto", atalhou o bispo - e D. Hugo, essa figura tutelar da Igreja portucalense voltou a ser referida "D. Teresa deu-lhe bastantes poderes, mas também é verdade que os monges cistercienses de Cluny [Ordem religiosa fundada no séc. XI] tinham bastante dinamismo" , enfatizou o bispo.

Há medida que o passeio avançava, alguns moradores presenciavam estupefactos a presença do prelado nas ruas medievais do centro histórico. "Como é bom vê-lo aqui", diz um deles na Rua de Pena Ventosa. "O padre Américo também costumava vir falar connosco", notou outro residente.

Como existe muito património para descobrir, a paragem no Largo do Colégio é curta. A igreja de S. Lourenço, de "fachada tipicamente dos jesuítas", merece comentários elogiosos e, ao lado, nas escadas circundantes observam-se taipais a esconder misérias "Os turistas eram confrontados com seringas deixadas pelos toxicodependentes", contou, ao JN, um morador da Rua de Sant'Ana.

Surgem, entretanto, nomes da toponímia a suscitar curiosidades Rua da Bainharia e Viela do Anjo (cuja designação "ainda é um grande mistério", no dizer de Germano Silva), nichos abandonados nas ruas da Ponte Nova e dos Mercadores. "Não sei se podemos fazer alguma coisa para os reabilitar. Se as pessoas quiserem tudo será possível", defendeu o bispo. Neste roteiro pela cidade sem gente, há mais lamentos à espreita: na Rua das Flores, vários solares abandonados; na Rua de Mouzinho da Silveira, dezenas de prédios a exigir urgente reabilitação. "É uma dor de alma", ouve-se. A viagem a pé à volta da cidade histórica termina junto ao casario da Ribeira-Barredo e o Douro foi o bálsamo para os sentidos.