11.5.09

Quando cai a noite, o medo chega ao Bairro da Bela Vista, em Setúbal

José Bento Amaro, in Jornal Público

Junto ao "bairro azul", jazem as carcaças calcinadas de cinco automóveis. Há prédios decrépitos e labirínticos e ruas atulhadas de lixo


O amanhecer é pacífico, a tarde é de expectativa e a noite traz o medo. É assim há quatro dias, no Bairro da Bela Vista, em Setúbal. Pedras, tiros e garrafas em chamas contra a esquadra, os carros estacionados, os caixotes do lixo ou os jornalistas. A madrugada de domingo trouxe mais destruição ao bairro pobre onde algumas dezenas de jovens continuam a usar a força como forma de protesto pela morte, há uma semana, de um amigo que foi baleado durante um assalto em Alvor, no Algarve.

"Como é que se vive na Bela Vista? Vive-se com o coração aos saltos, como aconteceu ontem [sábado], quando escutei os tiros mesmo ao pé da minha porta", disse a cliente de um café localizado em frente à esquadra. Este é, de resto, um dos poucos estabelecimentos comerciais que existem num bairro que tem cerca de 7.000 residentes, 33 anos de existência, uma taxa de desemprego que mais que duplica a média nacional e montanhas de lixo acumuladas nas ruas largas que atravessam lotes de prédios decrépitos e construídos como se de tocas se tratassem, tantos os corredores e labirintos.

A PSP tem um perímetro de segurança em redor da esquadra (já atingida a tiros de caçadeira). Espalhou homens armados pelas varandas dos prédios mais próximos e faz incursões frequentes ao chamado "bairro azul", uma zona da Bela Vista que é apontada como o principal foco dos problemas. Aí, quando os jovens decidem fazer uma pausa no arremesso de pedras, pode-se ler nas paredes ameaças de morte à PSP. Mas não é só nessa zona da cidade que surgem, pintadas, as injúrias. "Tocam em um, tocam em todos. Bela Vista em todo o lado", diz uma inscrição recente e que soa como um incitamento à revolta geral. "É bom que a imprensa diga o que aqui se passa e que não faça destas pessoas os eternos coitadinhos", alerta um agente.

A ferro e fogo

Ontem, a meio da tarde, ainda era possível observar nos arruamentos próximos do "bairro azul" as carcaças calcinadas de cinco carros incendiados nos últimos dias. As viaturas arderam em zonas relativamente ermas e, de acordo com alguns moradores, nem sequer seriam propriedade de ninguém do bairro. "São carros roubados, quase de certeza. Eles [os autores dos incêndios] não têm carta de condução, mas roubam os carros e andam pelo bairro a fazer corridas", disse um idoso.

Um pouco por todo o lado são vísiveis os restos dos caixotes do lixo e ecopontos incendiados com gasolina. Há, também, vidros de janelas estilhaçados, não se sabe se por pedras se pelo calor das chamas. As barras de ferro que protegem muitas das janelas e portas mais baixas pouca utilidade têm contra o fogo. Por vezes o bairro faz lembrar um cenário de guerra.

No "bairro azul", onde a PSP conseguiu durante a madrugada de domingo levar para identificar 13 suspeitos (três ficaram detidos por injúrias, incitamento ao motim, posse de droga e de armas), os ânimos só serenam quando o Corpo de Intervenção faz nova demonstração de força. A espécie de "piquete" que vigia a estrada e se entretém a apedrejar carros identificados da comunicação social, é obrigada a retirar. A polícia vai a algumas casas e pouco depois sai com mais um suspeito. "É o Vitaminas", diz um morador local. Logo a seguir, quando a polícia já recua, um rapaz chega ao pé dos jornalistas e, com uma pedra na mão, diz que "a visita acabou".
Os tons ameaçadores repetem-se sempre que se tenta falar com um africano. Há alguns que, de charro na boca, perguntam: "Quanto vamos ganhar por estar a falar?". Outros ignoram as aproximações da imprensa. Cospem no chão e ignoram ostensivamente mãos estendidas para os cumprimentar.

A animosidade para com a imprensa e a polícia não se aplica à comunidade cigana que ali vive. Rute Conceição, ladeada pela mãe, irmãs, filhos e sobrinhos, diz que se dá bem com todos. "Nunca tive problemas com pretos nem com timorenses", afirma. A mãe conta uma história recente, de "uns pretos que avisaram outros, fora do bairro, para não se meterem com as minhas filhas".