23.9.10

“Sou cigano. Tenho de provar que não sou ruim”

in RR

A relação dos ciganos com a comunidade maioritária teima em avançar lentamente. De um lado mantém-se o medo de perder identidade, do outro perpetuam-se mitos e ideias feitas. O desconhecimento leva a um virar de costas que já dura há cinco séculos.
Na Feira de Gondomar, a família Coutinho toma conta de um dos corredores centrais. São 11 irmãos ciganos, quase todos no negócio da venda de roupa. Entre os pregões que prometem “tudo a dois euros” ou afiançam que “só não leva quem for tolo”, o repatriamento de ciganos ilegais em França é tema de conversa recorrente. Ouve-se que “eles não estão a estorvar ninguém”, que “cada um tem direito à sua etnia” e que “é racismo em força, mesmo”.

Joel Coutinho, um dos 11 irmãos, é membro da União Romani Portuguesa. Esteve presente numa manifestação contra as políticas francesas, em Lisboa, no início de Setembro, “porque é preciso acabar com esta perseguição dos ciganos, que dura há séculos”.

Joel teme que o que está a acontecer em França gere onda anti-cigana. Considera, por isso, urgente que a comunidade aprenda a defender-se pela lei: “Dizem que os ciganos são maus. Não são, mas pensam que com a violência resolvem as coisas… e quando usam a violência perdem a razão”.


Ciganos entre nós
“Se não comes a sopa, vem o cigano e leva-te”
Quinhentos anos depois da chegada dos primeiros ciganos a Portugal, a relação com a comunidade maioritária teima em avançar lentamente. Há um ano à frente do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), Rosário Framhouse identifica, de parte a parte, “uma relação de tensão, de desconfiança, de medo”.

A comunidade maioritária cresceu a ouvir “se não comes a sopa, vem o cigano e leva-te”; do outro lado, grande parte da comunidade cigana continua a fechar-se, “com receio de perder a identidade”, passando ao lado das ferramentas “que lhes permitiriam defender essa identidade”, sublinha Farmhouse.

Não se sabe quantos ciganos vivem em Portugal. Estima-se que sejam entre 40 e 50 mil, mas a Constituição Portuguesa não permite identificar a etnia no registo. Sem números concretos quanto à escolaridade, condições de habitação, criminalidade, os mitos e preconceitos têm todo o espaço para crescer.

A dirigente do ACIDI aponta um exemplo: “Não é verdade que todos os ciganos recebem Rendimento Social de Inserção (RSI). Não chegam a 50% as famílias que recebem”. Dados do Instituto de Segurança Social relativos a Dezembro de 2008 indicam que a comunidade cigana representa 3,7% do total das famílias beneficiárias deste apoio financeiro do Estado.

“Somos o produto da nossa sociedade”
Camuflados na massa anónima, vão-se multiplicando casos como o de Hélio Serrano, 29 anos, a estagiar numa sociedade de advogados. Cresceu com os pais e os quatro irmãos num bairro de barracas perto do estádio de Alvalade. Teve “a sorte de ter um pai e uma mãe que trabalharam desde sempre” e, quando tinha 11 anos, mudaram-se para um apartamento em Loures, o que permitiu a Hélio e aos irmãos continuar a estudar.

Os pais são feirantes e Hélio sempre os acompanhou nas vendas. Foi assim que conseguiu ir pagando o curso e as contas da casa desde que se casou, aos 23 anos, com uma cigana de 18 anos. Hoje têm duas gémeas de cinco anos e uma filha ainda de meses.

“Tive preferência em casar dentro do grupo”, conta Hélio, porque “viver como cigano é viver de acordo com as regras e costumes”. São marcas de identidade que nunca escondeu - “ser cigano é um orgulho, as pessoas não compreendem isto”.

Mas Hélio também admite que não tem um percurso comum e que o momento em que se separou da comunidade determinou as oportunidades que se abriram. Às vezes questiona-se: “Se eu tivesse vivido com os ciganos, não tinha chegado a este patamar. Nós somos o produto da nossa sociedade, não é…”.

Hélio habituou-se a não usar a etnia como desculpa, mas sabe que vem aí um grande obstáculo. Para arranjar um emprego, “não parto em igualdade com os meus pares, porque primeiro vou ter de provar que não sou ruim”.

“E se ninguém dá emprego ao cigano?”
A entrada no mercado de trabalho é um dos maiores entraves à integração da comunidade cigana. Fora do circuito da venda ambulante, poucos empregos lhes são confiados. Para António Pinto Nunes, presidente da Federação das Associações Ciganas Portuguesas, “o medo de muitos ciganos é tirar o filho do negócio para ele estudar” e temer que esse esforço não compense.

“Com 20 ou 25 anos, quando estiver formado, ele não sabe comprar um sapato para vender ou avaliar o stock de uma loja. E se ninguém lhe der um emprego, se ele for médico e não o quiserem, se for um advogado e ninguém confiar nele? Vai ser um vagabundo? Vai ser pior do que se andasse ao negócio”, conclui.

Para quem permanece ligado às vendas, as vantagens da escola terminam muito cedo. Maria José Casa-Nova, investigadora da universidade do Minho, verificou em vários trabalhos de campo que “hoje em dia, praticamente todos os ciganos frequentam o primeiro ciclo, porque consideram essencial saber ler e escrever. A questão do manuseamento do dinheiro também é importante”. Aprendendo isto, “ a escola perde significado”.

Integração ou assimilação?
Há 20 anos a estudar a comunidade cigana, Maria José Casa-Nova acredita que o problema central está no próprio conceito de integração, pensado normalmente “de forma unilateral e subordinada”, sem ter em conta “o que é para esta minoria estar integrado”. A investigadora acredita que, se este não for um processo recíproco, trata-se de “assimilação”, porque “aquilo que se pretende é que este outro se torne semelhante a nós”, perdendo as suas características culturais.

Em 2008, Ano Europeu para o Diálogo Intercultural, a Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura correu o país para estudar a integração da população cigana e concluiu que “Portugal tem a opinião pública mais racista e estereotipada da União Europeia”.

Também o terceiro relatório da Comissão Contra o Racismo e a Intolerância do Conselho da Europa identificava, em 2006, uma presença marcada de estereótipos racistas entre a população portuguesa e recomendava a adopção de uma estratégia nacional para lutar contra a exclusão social dos ciganos.
Uma tarefa que implica construir pontes e, aos poucos, ir retirando à palavra cigano a conotação que carrega. No dicionário, ainda se define em registo informal como “trapaceiro, traficante, impostor”.