21.9.10

Alargamento do pré-escolar e redução da mortalidade são as conquistas de 20 anos

Por Natália Faria, in Jornal Público

A taxa de mortalidade baixou de 10,9 para 3,6 mortes por cada mil crianças. O pré-escolar já chega a 72,3 por cento das crianças, percentagem acima da média dos países da OCDE


Portugal assinala hoje o 20.º aniversário da adopção da Convenção sobre os Direitos da Criança e, consoante a perspectiva de quem olha, o copo pode estar meio cheio ou meio vazio. Reduziu-se substancialmente a mortalidade infantil, mas mantêm-se formas sub-reptícias de violência que levam a problemas como depressão, obesidade e distúrbios de sono; passou a reconhecer-se a criança como um sujeito de direitos no plano jurídico, mas a voz dos menores de 12 anos raramente é plasmada nas decisões judiciais. Pela positiva: a educação pré-escolar cobre hoje mais de 70 por cento das crianças, entre os três e os quatro anos.

Por partes. No olhar do pediatra Mário Cordeiro, o copo está meio cheio. "Em geral os direitos das crianças e adolescentes são bem cuidados no nosso país, mesmo que estatísticas mal interpretadas ou feelings possam fazer algumas pessoas dizerem o contrário", sustenta aquele especialista, para quem os últimos 20 anos ficam marcados sobretudo pela redução da taxa de mortalidade perinatal e infantil, "resultante dos melhores cuidados à grávida e ao feto, e ao recém-nascido". Em números do Instituto Nacional de Estatística: em 1990, a taxa de mortalidade infantil era de 10,9 mortes por cada mil crianças; em 2009, tinha baixado para 3,6.

A ampliação do programa nacional de vacinação "a praticamente todas as crianças" é outra das conquistas enfatizadas pelo pediatra.

Pela negativa, Mário Cordeiro elenca "algumas formas sub-reptícias de violência, nomeadamente psicológica, as dificuldades em fazer exercício físico" e "o stress na escola e em casa que leva, por exemplo, a tristeza, depressão e problemas de sono". Nesta lista entram ainda "os erros alimentares que conduzem à obesidade" e "a solidão e a dependência de ecrãs em que se situam muitas crianças". A deterioração das condições ambientais é outro dos aspectos negativos, segundo Cordeiro, por causa das consequências para a saúde das crianças, "designadamente na área das doenças alérgicas, cansaço e no cancro".

A jurista Ana Perdigão, do Instituto de Apoio à Criança, também destaca o propósito de, até ao final do ano, se alargar os núcleos da criança e jovens em risco a todos os centros de saúde e hospitais com atendimento pediátrico do país. "Hoje existem cerca de 200 desses núcleos e considero exemplar a forma como a saúde se organizou para responder às crianças e jovens em risco", sublinha.

O reconhecimento da criança como um sujeito de direitos no plano legal é outra das grandes conquistas enfatizadas por Ana Perdigão. "O novo direito de menores, a lei de protecção à criança e jovem em risco, é uma grande mais-valia porque aqui a criança aparece-nos como um verdadeiro sujeito processual com direito a participar nas questões que dizem respeito à sua vida", destaca.

Na prática, as crianças com 12 e mais anos passaram a poder pronunciar-se no âmbito de uma intervenção da comissão de protecção de menores. "Se o jovem se opuser a essa intervenção, mesmo que os pais tenham dado autorização, a comissão deixa de estar autorizada para prosseguir", explica Ana Perdigão. Em consonância com isso, no campo da adopção, "as crianças com 12 ou mais anos de idade têm que dizer se querem ou não ser adoptadas por determinada família". Numa situação de divórcio, a criança ganhou o direito a ser ouvida sobre a regulação do poder parental "desde que o juiz entenda que tem maturidade para tal".

"Infelizmente", contrapõe a professora do Instituto de Educação da Universidade do Minho Natália Fernandes, esses "pequeninos avanços legais" demoram a traduzir-se nas práticas. "No âmbito da protecção das crianças e jovens, é irrisória a participação de crianças com menos de 12 anos, mesmo quando estas têm maturidade para se pronunciar. E mesmo nos processos em que as crianças são ouvidas, é raro ver depois a opinião da criança plasmada na decisão", lamenta esta especialista na área da sociologia da criança, para quem, 20 anos depois da adopção da convenção, persiste na sociedade portuguesa "uma cultura de não respeito pela opinião da criança".

Pela positiva, Natália Fernandes destaca o alargamento do pré-escolar. Por estes dias, a taxa de crianças entre os três e os quatro anos inscritas nas escolas é de 72,3 por cento - acima dos 71,5 por cento da OCDE. Há 20 anos, a rede pública era "uma quase inexistência". E o que se joga aqui é o valor da igualdade entre todos. Porquê? "Porque é na educação pré-escolar que se promovem as competências que permitem às crianças menos favorecidas enfrentar um percurso escolar com as mesmas ferramentas que as crianças que, porque pertencem a classes sociais mais favorecidas, têm um estímulo mais acentuado."