7.5.15

Mãe, posso voltar para casa? Levo mulher e filhos

Isabel Tavares, in onLine

São famílias três-em-um. Filhos que regressam a casa dos pais, muitas vezes com os seus filhos, num movimento contranatura

Podíamos chamar-lhes família Moulinex: todos na picadora e um, dois, três: avós, filhos e netos, tudo desfeito de uma vez só. É a família que sobra da austeridade, a família do pós-troika, reunida pela falta de dinheiro e de alternativas.

Isabel Casal Ribeiro faz parte de uma dessas famílias. A firma onde trabalhava desde sempre, das mais antigas do país, fechou portas em 2009. Decidiu não baixar os braços – “viver de subsídios não era solução e não está no meu feitio” – , por isso pôs mãos à obra e transformou o desemprego numa oportunidade.

Abriu um negócio próprio e contratou todos os ex-colegas do seu departamento, mesmo depois de o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) se ter recusado a dar-lhe à cabeça o dinheiro a que tinha direito, apenas porque não.
Fez-se sócia-gerente e o marido, Pedro, juntou-se ao negócio. Trabalhavam dia e noite, mas depressa conseguiram contratos internacionais e, em 2012, tinham até propostas de marcas clientes, multinacionais, para deslocalizar a sua produção na China, o que lhes valeria vendas de 2 milhões de euros.

O senão é que precisavam de máquinas mais modernas e isso significava um investimento demasiado pesado. Havia ainda a questão de ficarem períodos de tempo sem trabalho e as encomendas chegarem todas ao mesmo tempo, o que os punha a trabalhar, por curtos períodos, 24 sobre 24 horas. Além disso, “o material para satisfazer as encomendas tinha de ser pago a pronto, quando a empresa recebia a 90 dias”, lembra.

A firma, que exportava quase tudo o que produzia, acabou por fechar, com uma carteira de encomendas superior a 300 mil euros. Dezoito pessoas ficaram no desemprego devido a problemas de tesouraria.

Isabel ainda pediu apoio ao banco, ainda tentou candidatar-se a fundos comunitários, ainda pediu ajuda ao governo. Chegou tudo demasiado tarde. “Havia bancos a aplicar spreads de 10 por cento. O ministro da Economia [Álvaro Santos Pereira] disse que havia um gabinete de apoio e protecção às PME, mas nunca chegámos lá. As linhas de financiamento eram para esquecer e o QREN [Quadro de Referência Estratégica Nacional] deixava de fora as empresas de Lisboa”, conta.

Depois foi o efeito de dominó. Tudo ruiu à sua volta e da sua família. Isabel e Pedro Casal Ribeiro não tiveram direito a qualquer subsídio ou ajuda por terem ficado sem emprego, apesar de terem todos os impostos em dia e de ambos descontarem para a Segurança Social. Tentaram em vão, numa época em que só se ouvia falar de cortes.

O dinheiro começou a escassear. Isabel continuou a responder a anúncios e a procurar, “desesperada”, um emprego. Sem êxito. Pedro também. As perspectivas eram nulas e adivinhava-se que a taxa de desemprego atingiria os 18 por cento em Portugal. “Os miúdos saídos da faculdade não conseguiam emprego, mesmo com mestrados e doutoramentos. Como é que eu, sem um curso superior e com mais de 40, ou o meu marido, quase 20 anos mais velho, iríamos sobreviver?”

O que tanto temiam acabou por acontecer. “As contas começaram a chegar, e nós a desesperar. Fomos pedindo dinheiro à família enquanto isso foi possível. Eu vendi ouros e dobrões, até que já não tinha mais nada.”

A casa tinha sido comprada com carência de amortização do capital. Nos primeiros dois anos apenas pagavam juros e, só a partir de então, a prestação mensal respectiva. Era “agora que ia começar a doer”. A primeira coisa de que se desfizeram foi dos carros. Primeiro um, depois outro. “Tentámos renegociar o empréstimo à habitação com o banco, mas acabámos por ter de deixar a casa”, uma moradia com jardim em Sintra, perto do local onde tinham a empresa.

A seguir foi sempre a descer. “As pessoas não têm ideia.” Ou têm, porque “encontrávamos muita gente na nossa situação e, se isso não nos tornava mais felizes, fazia com que nos sentíssemos um tanto acompanhados”.

Tudo pareciam obstáculos. Isabel e Pedro Casal Ribeiro têm dois filhos, agora com 19 e 22 anos. O mais velho, Frederico, estava doente e a precisar de médicos. Mariana entrou em crise. Para trás ficaram ainda dois gatos e um cão, o “ai-jesus” de Mariana.

A solução foi ir viver para casa dos sogros de Isabel, pais de Pedro. Uma vivenda no Estoril com um grande jardim. “Mas animais, nem pensar!” É difícil para pessoas com mais de 90 anos, habituadas a uma rotina, mudar de vida assim de repente. Os gatos ainda foram metidos, à socapa. O cão, um rafeiro arraçado de Labrador, acabou em casa de amigos.
Quem é que pediu ajuda? “Isso deve ter sido o mais difícil de tudo, admitir que, sozinhos, já não conseguíamos. O Pedro demorou até perceber e foi preciso engolir muito orgulho.”

Isabel, Pedro, Frederico e Mariana Casal Ribeiro tiveram sorte no meio do azar. A família acolheu-os e a casa onde moram agora é independente da dos sogros/ pais/avós. Vivem no rés-do-chão/cave que era parte do rendimento dos pais de Pedro, alugado a turistas no Verão.

Pedro sofreu, sentiu-se falhado. Era ele o homem da família, a quem – acredita – competia proteger e sustentar mulher e filhos. Além disso, Pedro e Isabel têm irmãos, dois de um lado, três do outro. Alguns deles, também a passar por dificuldades financeiras. Porquê ajudar uns e não outros, perguntavam-se.

Os pais de Pedro viram a sua vida mudar. Ainda que independentes, não é a mesma coisa morar em casa dos pais ou ter casa própria. Mas há amigos que estão a viver debaixo do mesmo tecto: avós, filhos e netos. Partilham zangas, discussões, “metem-se” na vida uns dos outros, opinam, “às vezes, já não se podem nem ver”. Muitas vezes, o ódio toma o lugar do amor.

Nesta família, apesar de tudo, as coisas correm bem. Mas já houve amuos, ingerências. “Coisas, às vezes, sem querer, até sem importância, mas que acabam por magoar, por serem exacerbadas pela situação de dependência em que estamos, em que nos sentimos. Estamos mais fragilizados”, diz Isabel.

Todos sentem falta de poder brincar, de se distrair, “fazer uma avaria, ir a um cinema, beber um copo sem nos sentirmos culpados”, explicam.

“É difícil para todos.” Frederico e Mariana concordam. Ele guarda tudo, diz que compreende tudo, mas quis deixar os estudos para poder ajudar os pais nas despesas. Ela extravasa, fica nervosa, não consegue concentrar-se nas aulas, tem más notas e lamenta ter perdido tudo. Os dois revoltados, cada um à sua maneira. “Tiraram-nos tudo”, diz Mariana. “Como é possível fazerem isto a pessoas que sempre fizeram o que era certo?”, questiona.

Os pais, primeiro, teimaram, explicaram a importância de um curso superior, de uma licenciatura. Mas acabaram vencidos. Os dois filhos enveredaram por cursos técnico-profissionais. Frederico já está a trabalhar e recebe os maiores elogios. Pode ser que volte para a escola mais tarde.

Mariana ficou doente e desistiu do curso. E foi na procura de ajuda para a filha que Isabel encontrou um emprego. Trabalha que se farta e ganha muito abaixo do salário mínimo. De tal forma que, volta e meia, é Frederico quem se oferece para ajudar nas compras.

Chega a casa depois das oito e meia da noite, “sem cabeça para nada”. Pedro também não desiste e, como tantos, procura ganhar em comissões. De tudo o que aparece. Pouco a pouco, as coisas parecem estar a recompor-se. Excepto quando tudo parece voltar para trás, tudo parece demasiado. Isabel, às vezes, ainda chora. Às vezes, choram todos.