15.1.19

Racismo não é fado

Catarina Marcelino, in Visão

Devemos recordar a inquisição, a escravatura, o holocausto, enquadrando estes acontecimentos em momentos históricos de normalização da intolerância em que a discriminação, o fundamentalismo e o ódio foram aceites e integrados no quotidiano

Em Cacheu, na terra onde existiu a primeira feitoria portuguesa na Guiné, há um espaço museológico que conta o percurso de um dos maiores flagelos da História da humanidade, o tráfico negreiro. Estimam-se 7,7 milhões de Escravos transportados, inaugurando por esta via o comércio triangular intercontinental de grande escala.

As pessoas escravas eram tratadas como coisas, agrilhoados e marcados com ferros em brasa, arrumados nos navios como se de carga se tratasse, imóveis, até não caberem mais, sendo o resultado a morte de muitos e muitas durante a travessia.

Após o fim da escravatura no século XIX, o passado colonial do país continuou a distinguir os cidadãos pela cor da pele. O termo mulato que vem de mula, ou seja, de um animal cruzado entre duas espécies, que serve como animal de carga ou a imobilidade das pessoas negras nas funções de trabalho que exerciam quando eram escravas, são exemplos evidentes da ostracização a que foram sendo sujeitas.

Chegámos ao Portugal do século XXI, com 45 anos de democracia e com uma sociedade diversa, constituída por pessoas com diferentes origens étnico-raciais, muitas delas com nacionalidade portuguesa. Estas pessoas têm em comum a ascendência africana que hoje contribui para este universo sociocultural de grande valor, mas também fazem parte da herança histórica do racismo e da discriminação, que não desaparece apenas por proclamação. É tempo de assumir sem complexos ou preconceitos o nosso legado.

Portugal é um país democrático, com uma Constituição que protege a liberdade, a igualdade e as garantias das pessoas e que não permite discriminação formal em função da origem étnico-racial. Contudo, as sociedades são diversas, influenciadas por múltiplos fatores. Em cada individuo existe um sujeito com a sua história, a sua identidade e os seus valores familiares e sociais.

Quando falamos em discriminação ou racismo institucional, não estamos a falar de regras de conduta ou funcionamento instituídas por imperativo normativo ou legal, mas sim de alguns comportamentos individuais de quem trabalha nas instituições, que podem influenciar posturas de desigualdade e discriminação, muitas vezes de forma dissimulada, a que se impõe um combate institucionalmente assumido enquadrado com transparência nos valores e na cultura das organizações.

Mas quanto à segregação indireta, esta é formalmente aceite, justificada por circunstâncias diversas, relacionadas com o território, a mobilidade, a educação, os rendimentos, a classe social de pertença, entre outros.

Assim se explicam bairros onde a maioria das pessoas que lá vivem são de origem africana ou cigana, localizados em zonas menos nobres e desvalorizadas do território, ou as escolas que têm crianças maioritariamente destes grupos ou ainda turmas com um elevado número de crianças afrodescendentes e ciganas muitas vezes em currículos alternativos, enquanto que outras escolas muito próximas são frequentadas quase exclusivamente por crianças da comunidade maioritária.

A realidade nacional não encontra dados estatísticos que ajudem a uma melhor caracterização e compreensão. Para que tal aconteça é premente que os Censos de 2021, tendo obviamente em conta a baliza constitucional, possam incluir perguntas que nos permitam saber quem de facto somos nesta diversidade nacional, quantas pessoas constituem as minorias étnico-raciais, cruzando com dados sobre educação, rendimentos, justiça e habitação, podendo fazer um retrato fidedigno desta realidade.

É fundamental que a sociedade portuguesa compreenda que a discriminação étnico-racial, o racismo e a xenofobia têm expressões diversas, que não são apenas as manifestações de violência física e verbal extrema que de quando em vez nos acordam da apatia.

Os valores democráticos perigam pelo mundo, olhamos para países europeus como a Hungria, a Polónia ou a Itália, mas também para o Brasil ou os Estados Unidos e vemos a intolerância aos que são diferentes, a crescer e a instalar-se. E não sejamos ingénuos em acreditar que em Portugal simplesmente não é possível acontecer.

Em nome da liberdade não se podem transpor valores que põem em causa a própria liberdade, sob pena de normalizarmos ideias e comportamentos que são a antítese da cidadania, como aconteceu com a TVI e a entrevista a Mário Machado que, assumidamente, defende o fascismo e o racismo, tendo utilizado este tempo de antena televisivo, com a conivência, mais ou menos consciente de quem o convidou, para os promover.

Devemos recordar a inquisição, a escravatura, o holocausto, enquadrando estes acontecimentos em momentos históricos de normalização da intolerância em que a discriminação, o fundamentalismo e o ódio foram aceites e integrados no quotidiano. Só com esta consciência viva, nunca esquecendo, podemos estar todos os dias vigilantes, contribuindo, de forma eficaz, para que o triste fado não se repita.

Catarina Marcelino
CIDADANIA E IGUALDADE
Nasceu no Montijo. Licenciou-se em Antropologia pelo ISCTE. Construiu o seu percurso de ativismo cívico e político através de experiências de voluntariado na AMI, Comunidade Vida e Paz, na Liga Portuguesa Contra a Sida e como dirigente das Mulheres Socialistas. Trabalhou em Câmaras Municipais, foi Adjunta do Secretário de Estado da Segurança Social e Presidente da CITE. Foi Secretária de Estado para a Cidadania e para a Igualdade e é Deputada à Assembleia da República pelo Partido Socialista.