Número de passageiros em Lisboa e no Porto deu um salto em março e está próximo do pré-pandemia. Mesmo assim, o uso dos transportes é reduzido. Maioria da população continua a ir de carro para o trabalho
Há mais de 10 anos que a funcionária de um dos cafés da estação do Cais do Sodré, em Lisboa, conhece o movimento dos que por ali passam ao sair do comboio, a caminho do metro ou antes de apanhar o barco. Mede o aumento do uso dos transportes pelo número de cafés, cervejas ou bolos vendidos e a procura parece já superar o período pré-pandemia. Ao balcão ouvem-se as histórias de quem voltou a deixar o carro em casa, não tanto pelo aumento do custo de vida, mas porque, finalmente, a pandemia parece distante. Os turistas também já vieram em força, até mais cedo do que noutros anos, contribuindo para rebentar pelas costuras os comboios ao fim de semana, seja a caminho da praia ou dos pastéis de Belém.
O que se sente ao balcão do café corresponde, em parte, ao que os dados das operadoras de transporte recolhidos pelo Expresso refletem: tanto em Lisboa como no Porto, há sinais de um aumento mais acelerado de passageiros nos primeiros três meses do ano, com particular intensidade em março. A procura aproxima-se do período pré-pandemia e, ainda que sem certezas, o aumento do custo de vida é uma das explicações — sobretudo para quem encontra nos transportes uma solução para deixar o carro em casa e reduzir para €40 a despesa mensal com deslocações.
Apesar de os transportes não estarem ainda tão cheios como nas vésperas da pandemia — em janeiro e fevereiro de 2020 —, há casos, como o metro do Porto ou os comboios da travessia do Tejo, onde já circulam quase tantos passageiros como antes. E já são mesmo mais do que no início de 2019, embora nessa altura ainda não se tivesse verificado o aumento exponencial trazido pela redução do preço dos passes em abril. Segundo os dados mais recentes, tanto o transporte fluvial como os autocarros da Carris, em Lisboa, os da STCP, no Porto, os comboios e os metros das duas cidades estiveram mais cheios em março do que no mesmo mês de 2019.
O número de passes Navegante superou em 13% esse mesmo mês, mantendo-se abaixo das vésperas da pandemia, segundo a Transportes Metropolitanos de Lisboa (TML). No Porto, a diferença é mais clara: a utilização do Andante está 28% acima de março de 2019 e ao nível dos melhores meses que os transportes da cidade já tiveram, sobretudo devido ao metro, mostra a Transportes Intermodais do Porto (TIP). “O custo de vida é um dos vários fatores que podem justificar o aumento exponencial, porque as pessoas tendem a experimentar os transportes quando verificam que a sua utilização é menos pesada no orçamento”, resume Manuel Paulo Teixeira, administrador da TIP.
A TML, que gere os transportes da Grande Lisboa, refere um aumento da utilização dos autocarros, que, desde janeiro, são quase todos abrangidos pela Carris Metropolitana. “Estamos já a transportar os mesmos passageiros das operações anteriores [de cada empresa].” Quanto à falta de motoristas, que motivou várias falhas, a TML garante que o recrutamento é “contínuo” e que “o número em falta é agora residual”.
FALTA DE OFERTA E MAU SERVIÇO
Mesmo que os transportes voltem a encher como no final de 2019, é preciso ir mais longe para alcançar uma repartição modal sustentável. Nas áreas metropolitanas, mais de metade das deslocações são feitas de automóvel — 56% em Lisboa e 68% no Porto — e o uso dos transportes públicos é de 25% na AML e 16% na AMP, segundo o Censos. Na última década, ao contrário do desejável, o peso do carro até aumentou. E, a nível europeu, Portugal continua nos piores lugares pelo elevado peso do uso do automóvel. Longe ficam também as metas de descarbonização até 2030: em seis anos e meio é preciso reduzir 40% das emissões de gases com efeito de estufa nos transportes face a 2005.
No trânsito, para já, não há sinais de melhoria. Basta ver como o regresso ao trabalho no início desta semana ficou marcado por filas intensas para entrar em Lisboa e no Porto. Segundo a TomTom, empresa de sistemas de GPS, a demora no trânsito às 9 horas de terça-feira estava 30% acima do normal na capital e 13% na Invicta. “Temos mais carros na estrada e, ao mesmo tempo, alguns transportes estão congestionados”, afirma Álvaro Costa, especialista em mobilidade e professor na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. “O aumento do custo de vida tem impacto, porque as pessoas têm de procurar meios para se deslocarem por um preço mais baixo, mas muitas andam de carro por não terem uma boa opção de transportes, sobretudo que não demore muito mais tempo.” Para o especialista, a “falta de oferta” é o principal problema e considera “inevitável” investir mais nos transportes.
A expansão do metro de Lisboa e do Porto, os 62 novos comboios para as duas cidades (estima-se um aumento de 20% na oferta de lugares) e o investimento em nove barcos 100% elétricos para a travessia do Tejo (sem prazo para entrarem em funcionamento depois de o negócio ter sido arrasado pelo Tribunal de Contas) poderão melhorar o serviço. Mas não é para já: as obras nas redes do metro são até 2024 e o primeiro comboio só chega em 2026. A curto prazo, porém, há desafios: o aumento da procura por passageiros regulares, a chegada dos turistas no verão e a Jornada Mundial da Juventude, que trará 1,2 milhões de pessoas.
Concordando com a urgência em investir nos transportes, Rita Castel’ Branco, urbanista e especialista em mobilidade, defende uma aposta em metros de superfície e em autocarros “em sítio próprio, com prioridade ao semáforo”, por serem “mais rápidos e mais baratos, criando oferta em pouco tempo”. É que a falta de qualidade e fiabilidade dos serviços, como nos comboios da CP — afetados pelas greves em mais de metade dos dias dos últimos quatro meses — e nos barcos, não contribui para melhorar a realidade. “O aumento do custo de vida e do preço dos combustíveis deveria ser agarrado como oportunidade para a transição modal”, frisa, lembrando que 70% das deslocações em Lisboa são inferiores a 5 km e um terço é feita de carro.
A excessiva dependência do automóvel nas cidades está ligada a dois problemas, defende Rita Castel’ Branco. Por um lado, as periferias cresceram “fragmentadas” e é preciso criar transportes locais que alimentem os outros transportes de ligação aos centros urbanos, apostando ainda em ciclovias seguras. Por outro lado, nas grandes cidades, que até têm condições para andar a pé, de bicicleta e de transportes, o desequilíbrio do espaço público “incentiva o uso do automóvel particular”. E por isso, frisa, também é preciso uma política “coerente” de estacionamento. “Não é possível garantir fluidez, fiabilidade e frequência dos transportes se continuarmos a ter 70% a 80% do espaço público dedicado ao automóvel e com ruas congestionadas.”
